Todos são iguais. Mas uns são mais iguais do que outros?

Por mais de uma vez dei comigo a pensar se tivesse que escolher um valor, acima de todos os outros, qual seria. É uma escolha difícil, mas inclino-me muitas vezes para a justiça e coesão social e a defesa dos direitos humanos.

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"As migrações resultantes de deslocações forçadas, dentro e entre fronteiras, aumentaram 50% em dez anos

A Rita era aluna de 4.º ano quando a conheci, no âmbito de um programa de promoção de competências socioemocionais, que semanalmente implementava na sua turma. Numa atividade do programa, o grupo da Rita tinha que escolher três personagens, de entre um lote de dez, para fazer uma viagem. O objetivo era tornar consciente a noção de estereótipos e de estratégias de negociação. Surpreendentemente, ela e dois colegas selecionaram as mesmas três personagens, enquanto o restante elemento do grupo escolheu três diferentes.

A opção pela estratégia democrática determinaria a seleção das três personagens preferidas pela maioria. No entanto, a Rita não achou justo e interveio, porque o colega ficaria sem nenhuma das suas opções, enquanto os restantes elementos do grupo escolhiam todas as preferidas. Propôs então que os três elementos em maioria elegessem apenas duas das três personagens, cabendo ao colega em desacordo escolher a terceira.

O psicólogo Lawrence Kohlberg, autor da teoria do desenvolvimento moral, postulou três níveis de moralidade, cada um com dois estádios. O sexto e último estádio dentro do nível pós-convencional centra-se nos princípios éticos universais, que transcendem sociedades e leis em busca de princípios eticamente válidos para todos, de igualdade e dignidade. É comum este estádio começar a desenvolver-se na adolescência, embora muitas pessoas não o atinjam ao longo da vida. A Rita, ainda no 1.º ciclo, com os pais presos e aos cuidados da avó, evidenciou-o naquele dia.

Por mais de uma vez dei comigo a pensar se tivesse que escolher um valor, acima de todos os outros, qual seria. É uma escolha difícil, mas inclino-me muitas vezes para a justiça e coesão social e a defesa dos direitos humanos.

As migrações resultantes de deslocações forçadas, dentro e entre fronteiras, devido a causas diversas como catástrofes naturais, alterações climáticas, conflitos armados, perseguição, tráfico humano, violação de direitos humanos e violência generalizada aumentaram 50% em dez anos, segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (período de 2009 a 2018). Só no primeiro semestre de 2021, houve um aumento recorde de 82,4 milhões entre fronteiras e de 48 milhões em movimentos internos. Quase metade (42%) das deslocações forçadas refere-se a pessoas refugiadas e requerentes de asilo.

Acresce que, em 2022, continua a ser fomentada a aceitação de políticas e ideologias racistas e sexistas, que têm como base discursos políticos que diabolizam seres humanos e que forçam milhões de pessoas a tentar simplesmente sobreviver. E isto, infelizmente, é papagueado, pelos quatro cantos do mundo, com pouco sentido crítico. Alguns governos consideram o risco de morrer como um meio de dissuasão aceitável face a um número recorde de refugiados, migrantes, deslocados internos e requerentes de asilo. Estas políticas chegaram ao cúmulo de criminalizar aqueles que, vestidos de humanidade e empatia, tentam salvar-lhes a vida.

Com a pandemia assistimos a uma revisão do preço da vida humana em baixa. Segundo o último relatório anual da Amnistia Internacional, enquanto os cidadãos dos países ricos foram chamados para doses de reforço de vacinação, milhões de habitantes do hemisfério sul, incluindo os que se encontravam em maior risco de doença grave ou morte, aguardavam ainda a sua primeira dose. Pior que isso, 500 milhões de vacinas excedentárias nos países desenvolvidos ultrapassaram a sua data de validade e foram inutilizadas, enquanto os que necessitavam desesperadamente de uma vacina tiveram que esperar. E morrer.

Isto é sintomático de um mundo sem bússola moral, com os seus dirigentes a retirarem-se para as cavernas dos interesses nacionais. Um mundo que pensa a humanidade segundo a lógica orwelliana em que todos são iguais, mas uns são mais iguais do que outros. Como se alguns fossem deste planeta e outros de alguma lonjura alienígena.

É fácil julgar os outros pelos seus comportamentos e a nós mesmos pelas intenções. Por isso, quando tenho o privilégio de partilhar um bocadinho do meu tempo com uma miúda incrível como a Rita, com o coração e a mente nos sítios certos, capaz de perceber em dado momento a sua situação de privilégio e agir em conformidade, penso que a vida, no meio de tantos encontrões, também nos possibilita raros encontros.

Como diria Václav Havel:​ “Os direitos humanos são universais e indivisíveis… ao serem negados a alguém no mundo, estão a ser negados, indiretamente, a todas as pessoas. É por isso que não podemos permanecer calados quando enfrentamos a maldade ou a violência. O silêncio apenas os encoraja.”


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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