Catolicismo, crepúsculo para uma recriação

Contrariamente ao que se passa com a figura do Papa Francisco, a igreja portuguesa está a perder abruptamente o seu capital de prestígio e de respeitabilidade, erodindo-se o seu lugar de garante dos valores fundantes da Europa.

1. Por ser sólida e constitutiva da nossa sociedade, a religião aparenta ser estática, mas é dinâmica. Criadora de estabilidade nas sociedades, seja através das estruturas sociais que legitima, seja através das identidades e dos interditos, a religião é também sacudida pela sociedade que ela enforma, tendo de se adaptar.

Não há religião alguma que, apesar do seu quadro de verdade, se tenha mantido inalterada, tal como não há religião alguma que tenha perdurado desde a imemorialidade dos tempos até ao momento presente. Tendentes para o horizonte das grandes linhas quase estáticas, as religiões não deixam de ser instituições geridas por humanos, com os seus problemas e anseios, os seus egoísmos e afirmações de poder, permeáveis aos desejos e geridas, tantas vezes, pelas vontades pessoais.

Tal como há dois mil anos ninguém diria que o frágil movimento de Jesus resultaria na maior religião do planeta, com uma longevidade imensa, também hoje ninguém poderá afirmar que a Igreja Católica se vá manter com a influência, peso demográfico e cultural que apresenta.

2. Desde há cerca de dois séculos que o cristianismo ocidental, especialmente o católico, procura redefinir, sem êxito, o seu lugar na sociedade. Depois de uma longuíssima estabilidade paradigmática, lançada com a relação com a ideia de Império no Concílio de Niceia em 325, e consolidada com Carlos Magno e a sua coroação como Imperador no ano 800, o catolicismo foi brutalmente sacudido com as múltiplas revoluções de finais do século XVIII e inícios do XIX.

Com o mundo do Liberalismo, e uma sociedade laicidade, com a Revolução Científica, e o fim da necessidade de colocar Deus como o motor e a justificação de todo o cosmos, e com a Revolução Industrial que, com as anteriores, fez nascer o consumo, desenvolveu uma sociedade da técnica e uma ideia desenvolvimentista, a Igreja Católica viu surgir à sua frente uma sociedade completamente nova, crente no desenvolvimento, agregada em torno de instituições civis, e sem medo da ideia de pecado o original. Foi esta nova sociedade, fundamentalmente urbana, burguesa e escolarizada, que nacionalizou os bens da Igreja e fechou conventos, retirando-lhe a terratenencia que caracteriza essa relação de mil e quinhentos anos com o poder.

Com tremendas tensões com o mundo político e cultural, em Portugal marcadas pela guerra civil entre liberais e miguelistas, e pelo confronto com a I República, o tecido social apenas nas últimas dezenas de anos fez refletir nas práticas sociais essas revoluções do século XIX. Com o aborto legalizado, com as igrejas quase vazias, com a vida das paróquias muito decadente, com a falta de padres, e com os fraquíssimos índices de prática regular, seja a missa dominical, seja o pedido dos sacramentos que marcavam os momentos principais do ciclo da vida (especialmente, batizados e casamentos), a Igreja Católica portuguesa demorou na reação, escondendo-se numa aparência de normalidade, como que em negação.

3. O mais recente quadro desta linha evolutiva de decrescente peso social, as questões ligadas à pedofilia, são apenas mais um momento e uma imagem deste processo natural em que uma instituição milenar não consegue ver e entender o seu tempo. Com uma ingenuidade que nos surpreende, foi construída a imagem de que em Portugal tudo seria diferente, sem problemas semelhantes aos de Espanha, França ou EUA. Ingenuidade que rasa, ou a vontade de esconder, ou uma efetiva incapacidade de encarar as mudanças do mundo e dar respostas a uma sociedade que já é outra. Naturalmente, a segunda opção será a verdadeira, mostrando-nos que esse longo processo de adaptação de uma instituição altamente clerical e fechada ao mundo liberal ainda não teve lugar.

Este último golpe foi rude e poderá ter tido implicações no campo da confiança social, coletiva. Contrariamente ao que se passa com a figura do Papa Francisco, a igreja portuguesa está a perder abruptamente o seu capital de prestígio e de respeitabilidade, erodindo-se o seu lugar de garante dos valores fundantes da Europa. Perdendo o catolicismo este lugar, dificilmente o recuperará no atual quadro de liberdade religiosa onde o cidadão tem à sua frente um mundo imenso de opções.

Este é o momento para recorrer ao étimo da palavra crise e compreender a oportunidade que está à sua frente. Só com profundas alterações que tornem o cristianismo contemporâneo, a Igreja Católica poderá reconquistar o Ocidente.

É este o momento. Não sei se serão estes os homens.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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