Ondas de calor perigosas serão cada vez mais frequentes até 2100

Vagas de calor com grande impacte na saúde pública, que hoje ainda são relativamente espaçadas em países de latitudes médias como Portugal, podem passar a acontecer todos os anos, revela um novo estudo.

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Termómetro numa via pública em Espanha chegou a indicar 49 graus Celsius este Verão ISABEL INFANTES/Reuters

Vagas de calor perigosas como as deste Verão, que elevaram os termómetros a temperaturas recorde –Itália chegou aos 48,8 graus Celsius, por exemplo – deverão ser cada vez mais frequentes. É o que revela um estudo das universidades de Harvard e Washington, ambas nos Estados Unidos, que determina estimativas do impacte do calor no planeta até 2100 consoante as futuras emissões de gases de efeito estufa.

Não são animadores os cenários previstos no artigo científico publicado quinta-feira na revista Communications Earth & Environment. As previsões são especialmente preocupantes para os países próximos da linha do equador. Nesses lugares, trabalhar ao ar livre poderá vir a ser uma tarefa humanamente impossível durante vários meses do ano, mesmo que consigamos reduzir as emissões até ao fim deste século.

Temperaturas muito altas constituem um perigo para a saúde pública, podendo não só causar stress térmico, exaustão pelo calor, desmaios e edemas, especialmente nos grupos mais vulneráveis (crianças, idosos e pacientes com doenças crónicas como hipertensão ou diabetes), mas também agravar problemas existentes e até provocar a morte. Um relatório recente do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (​IPCC) refere ainda que “o calor extremo tem impactos negativos na saúde mental”.

“É surpreendente quão próximos certos locais dos trópicos estão de temperaturas extremamente perigosas. Não é preciso muito aquecimento global adicional para empurrar essas regiões para um território perigoso no que toca a índices de calor muito altos”, afirmou ao PÚBLICO, Lucas Vargas Zeppetello, autor principal do estudo.

Ainda assim, Zeppetello garante que há uma janela de oportunidade para “criar um futuro habitável”. Mas temos de começar a agir já, alerta o investigador, uma vez que as escolhas que fazemos hoje condicionam o amanhã.

“Fiquei definitivamente espantado com o leque de possibilidades que existem para o nosso futuro. Ainda estamos num momento crucial para as mudanças climáticas. Mesmo que não cumpramos as metas estabelecidas pelo Acordo de Paris, há uma grande diferença entre o pior e o melhor cenário”, diz Zeppetello, que iniciou esta investigação no âmbito do doutoramento na Universidade de Washington e, agora, trabalha como investigador em Harvard.

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Mapa superior (a): registo histórico de dias “perigosos” por ano, com um índice de calor acima de 39,4 graus Celsius. Coluna da esquerda (b, c, d): faixa de dias perigosamente quentes em 2050, com dez vezes mais dias “perigosos” no Sudeste dos EUA e mais de 100 dias “perigosos” em zonas da América do Sul, África, Índia e Austrália. Coluna da direita (e, f, g): gama mais ampla de possibilidades para 2100, com a parte inferior direita (g) a mostrar o pior cenário, com condições “perigosas” durante grande parte do ano na América do Sul, África Central e Sul da Ásia. Communications Earth & Environment

O que é o índice de calor?

O estudo baseia-se no índice de calor, que avalia o impacto da temperatura no corpo humano. Também conhecido como “temperatura aparente”, este indicador representa o calor que sentimos combinando a temperatura do ar com a humidade relativa. Isto tem implicações para o bem-estar ou desconforto térmico que cada um de nós sente na vida quotidiana. Graças à transpiração, estamos biologicamente preparados para lidar com variações de temperatura – mas só até determinados patamares.

Segundo o Serviço Nacional de Meteorologia dos Estados Unidos, 39,4 graus Celsius já constitui um índice de calor “perigoso”. A partir dos 51 graus Celsius, entramos no terreno do “extremamente perigoso”, que é considerado inseguro para todos os humanos, mesmo os que não fazem parte de um grupo vulnerável ou que tenham uma exposição uma breve.

Zeppetello explica que estes modelos foram inicialmente considerados para pessoas que trabalham em locais fechados com grande exposição ao calor – como acontece em contextos laborais com caldeiras ou fornos industriais. “Não foram pensados ​​como condições possíveis em ambientes externos, mas é isto que estamos a ver agora”, referiu num comunicado de imprensa.

O que o estudo agora publicado mostra é que, mesmo que consigamos cumprir a meta do Acordo de Paris – que consiste em limitar o aquecimento global a uma subida de até dois graus Celsius até 2100, face às temperaturas pré-industriais –, estaremos a entrar na zona vermelha do índice de calor. Nesse cenário estudado, a Europa Ocidental, os Estados Unidos, a China e o Japão ultrapassarão o limite “perigoso” do índice de calor até ao fim do século de três a dez vezes mais do que hoje. Os dias “perigosos” nos países tropicais podem até dobrar até 2100, o que significaria passar metade do ano em estado de alerta.

Ondas de calor perigosas, que hoje ainda são relativamente espaçadas em países de latitudes médias como Portugal, podem passar a acontecer todos os anos nas regiões situadas entre os dois trópicos e os círculos polares. Usando Chicago como caso de estudo, os autores previram um aumento de 16 vezes na ocorrência de ondas de calor perigosas nessa cidade norte-americana.

“Assim como Chicago, Portugal faz definitivamente parte das latitudes médias, uma vez que está abaixo do [paralelo] 40˚N. Tem um clima mais quente do que a maioria dos demais países da Europa e vai ultrapassar mais vezes esses índices de calor do que outras partes do continente. No entanto, tem uma influência oceânica bastante substancial, o que pode evitar alguns dos piores extremos”, afirmou Vargas Zeppetello ao PÚBLICO.

Os piores cenários

Os autores também estimaram o que aconteceria se tudo falhar, ou seja, se as emissões continuarem descontroladas como estão até 2100. Nesse caso, condições “extremamente perigosas” tornar-se-iam muito mais comuns em países próximos da linha do equador, como a Índia e a região subsariana.

“É extremamente assustador pensar no que aconteceria se 30 a 40 dias por ano ultrapassassem o limite extremamente perigoso”, disse Vargas Zeppetello. “São cenários assustadores que ainda temos capacidade de prevenir. Este estudo mostra o abismo, mas também mostra que temos algum poder para impedir que esses cenários aconteçam.”

Para elaborar estes cenários, os autores recorreram a um método estatístico que permite calcular o intervalo de condições futuras. Por forma a prever o intervalo provável de futuras concentrações de dióxido de carbono (CO2), optaram por uma abordagem estatística que combina dados históricos com projecções populacionais, crescimento económico e intensidade de carbono.

A abordagem estatística “fornece faixas plausíveis para emissões de carbono e temperatura futura e foi validada em relação a dados históricos”, disse o co-autor Adrian Raftery, professor de estatística e sociologia da Universidade de Washington, citado no comunicado de imprensa.