Eu (ainda) tenho uma doença

Fiz muito mal a mim próprio ao sofrer as dores da dor, e, pior, ao não conseguir evitar afundar comigo as pessoas que são a minha razão de existir.

Para a minha mãe, cuja beleza não cabe neste universo.

Não sei se estas palavras acabarão de uma forma triste ou alegre. Como quase sempre, escrevo sem saber aonde isto vai dar. Há dois anos que tenho uma doença que me conseguiu tirar a vontade de viver.

Se eu queria morrer? Digamos que não me importava muito. Eu perdi a vontade de viver, porque perdi o sentido da minha vida. Perdi a inspiração, perdi a motivação, perdi a capacidade de fazer tudo aquilo que eu quero fazer, e aquilo que é a única coisa que eu realmente sei fazer: ajudar a salvar vidas.

Perdi a conta aos fins-de-semana inteiros que passei em casa sozinho a chorar. Acho que posso dizer que tenho ou tinha uma carapaça emocional muito forte. Já há muito que não sei quantas pessoas me morreram nas mãos, nem quantas ajudei a salvar. Mulher, crianças, inocentes, terroristas... Tudo. Pessoas.

E mesmo tendo as emoções esticadas quase ao limite do que o ser humano possa aguentar, quebrei com esta merda desta doença. Bati no fundo vezes e vezes sem conta, descobrindo sempre um fundo mais fundo, sem saber se seria esse o verdadeiro fundo. O sofrimento e a tristeza corroeram a minha alma.

As réplicas das ondas de choque do sofrimento são inimagináveis. Uma de muitas foi ver como a tristeza mudou a minha personalidade... Para pior, claro. A solidão, a desilusão, a peneira dos que achava amigos/as são simbióticos com o que a dor crónica me tem causado.

Fiz muito mal a mim próprio ao sofrer as dores da dor, e, pior, ao não conseguir evitar afundar comigo as pessoas que são a minha razão de existir. Foi o que mais me doeu até hoje, mas talvez tenha sido aí que tudo mudou. Viver a minha tristeza, eu suporto, mas magoar e destruir o sol e a lua da minha vida, eu não conseguirei suportar. E por isso escrevo este texto, e por isso volto a escrever.

Há três coisas que paulatinamente me têm trazido mais sorrisos, mais força, e mais clareza de espírito. A primeira é a vontade de fazer felizes as pessoas de quem eu mais gosto. Simples, e é tudo o que interessa nesta vida. A segunda é uma melhor compreensão da minha doença.

Sou um homem da ciência e carrego a cruz de ser o gestor do meu processo clínico, o que poderia parecer uma vantagem, mas no meu coração não o é. Até prova em contrário, as minhas dores crónicas dos membros inferiores, altamente agravadas pelas posturas de sentado e de pé, são o resultado de uma infecção de uma bactéria que se chama Borrelia, e que mesmo depois de tratada deixou informação no meu sistema imunitário para fazer mal aos meus nervos periféricos e ao meu sistema nervoso central. Isto não tem cura, mas pelo menos tem cara. E agora, com mais convicção, sei que tipo de estratégias terapêuticas podem ter alguma utilidade, e não menos importante, que portas é que não vale a pena abrir.

Devo ter sido infectado por causa dos meus cães, e mesmo assim adoro-os e nunca pergunto “porquê eu?”, porque a vida é mesmo assim. A nossa existência é preciosa mas frágil, e a única certeza que temos é que as doenças acontecem e que vamos morrer. O que me leva ao terceiro ponto. Vamos todos morrer, mas, e até lá, o que fazer? O sentido da vida. Simples, mágico e todo-poderoso. Não é estanque, certamente não é o mesmo para todos, e está sempre a precisar de ser nutrido e consagrado. Talvez nunca mais venha a conseguir voltar a ser médico, o que me parte o coração em pedacinhos. Talvez nunca mais consiga ir em missão, o que para mim é como se me matassem um filho... Mas, e este “mas” é a súmula do que eu quero dizer, vou continuar a lutar pelas vozes que trago no meu coração, e pelas promessas que outrora fiz a mim próprio quando estava na minha versão mais bonita.

Entristece-me ver um mundo de gente fútil, snob, egoísta, hipócrita, gananciosa e com enorme desprezo pela sua própria família chamada humanidade. Mas eu tive a sorte, o privilégio, e por isso carrego a responsabilidade, de ter visto, convivido e trabalhado com os melhores dos melhores. Os bons. Os humanos. Os genuínos. Os carinhosos. Os corajosos. Os lutadores por algo maior do que nós próprios, porque só vale a pena viver por algo pelo qual estamos dispostos a morrer... E é esse o meu norte, o meu Porto, a minha inspiração, o meu sentido da vida.

Sabendo que nada vou conseguir, serei feliz a tentar. Nós somos o problema e nós somos a solução. E a nossa visão de mundo depende mais dos nossos olhos do que do mundo propriamente dito, e a felicidade está no nosso sentido poético de saber escolher a perspectiva para melhor ver. Dito isto, somos as emoções que cultivamos.

Vou escrever, vou pintar, vou aprender, vou sonhar, vou sorrir, vou ensinar... Sei lá. Vou fazendo o que o meu coração me disser, batendo pelo caminho certo. E se gostas mais dos sapatos do que do caminho, é porque não mereces caminhar.

Tenho muitas desilusões amarradas na garganta, mas tenho também uma boa mão-cheia de gente a quem devo a minha vida, que me faz chorar de boas emoções e sorrir quando fecho os olhos. Por esses, tudo farei.

Comecei este texto a chorar e acabo a sorrir. Adorava não ter esta doença, mas tenho. Dizer que estou bem seria demasiado floreado, mas estou melhor, e no caminho certo. O tal caminho, o da bondade e da integridade, que são as maiores riquezas que podemos almejar conquistar... E eu vou à luta, fazer por merecer.

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