A procurar respostas desde 2006 no “paraíso das limícolas”

Desde 2006 que José Alves, do Centro de Estudos do Ambiente e Mar e do Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro, passa parte da Primavera e do Verão na Islândia, para estudar o maçarico-de-bico-direito e outras aves que ali nidificam. Tornou-se investigador convidado da Universidade da Islândia e continua à procura de respostas que nos ajudem a perceber melhor o nosso mundo.

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O investigador José Alves na Islândia Nuno Ferreira Santos

Há cavalos à solta e alguns pernas-vermelhas (Tringa totanus) a gritarem connosco, quando José Alves chega ao ponto de encontro, no acesso a Fridland í Flóa, uma reserva de aves criada em 1997, que o biólogo português nos apresenta com um sorriso: “É o paraíso das Limosa limosa.” O investigador usa o nome científico dos maçaricos-de-bico-direito, que foram alvo da sua tese de doutoramento na Universidade de Aveiro e que continua a seguir, agora também como investigador visitante da Universidade da Islândia. Todos os anos, na Primavera e no Verão, é nesta ilha no meio do Atlântico Norte que o podemos encontrar.

Fridland í Flóa é uma zona húmida que se estende por cerca de cinco quilómetros quadrados, a partir de uma das margens do rio Ölfusá, o curso de água de maior caudal da Islândia. Resultado da confluência dos rios Hvítá e Song, ele corre ali placidamente, mas quase 90 quilómetros para nordeste, um dos rios que lhe dá origem, o Hvítá, tomba, violento, de uma altura de 32 metros, formando as espectaculares cataratas de Gullfoss, que com o seu arco-íris permanente e vários patamares de queda de água são uma das muitas atracções naturais da Islândia.

Para José Alves, contudo, o interesse do Ölfusá é outro. “É um rio parcialmente glacial, que traz muitos nutrientes para esta área e alimento, fazendo deste local o epicentro das limosas”, diz.

No início do século XX, todos os maçaricos-de-bico-direito conhecidos na Islândia concentravam-se nestas terras alagadas, cobertas de pequenas charcas, onde têm a companhia de muitas outras espécies de aves. Reconhecia-se, na altura, a existência de cinco mil indivíduos, cerca de 2500 casais. Hoje, explica José Alves, o aquecimento global permitiu que a espécie se expandisse para outras zonas do país e a estimativa é que haja 50 a 60 mil destas aves em toda a Islândia.

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Uma andorinha-do-mar-árctico sobrevoa a paisagem de Fridland í Flóa.
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José Alves usa os binóculos para procurar a presença de aves nas imediações
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A mobelha-pequena é um dos símbolos da reserva de aves e mais uma espécie que aqui nidifica

“Esta espécie tem sido capaz de responder a estas alterações globais. É até um caso um pouco raro, porque a maioria das aves limícolas tem vindo a declinar. Estas respostas são possíveis nesta população porque aqui na Islândia ela encontrava o seu limite norte de distribuição e, à medida que o aquecimento global é cada vez mais prevalecente, ela tem encontrado novos locais para colonizar e para ocupar, nomeadamente nas zonas mais a norte do país, donde antes estava ausente. Portanto, é uma espécie que tem vindo a aumentar, porque há uma abertura destes habitats, deste acesso a recursos noutros locais. Claro que se isto continua, temos de ver até onde é que a espécie consegue responder”, diz o investigador.

O contacto do investigador com os maçaricos começou em Portugal, mais particularmente no estuário do Tejo, onde milhares destas aves passam o Inverno, alimentando-se e descansando, antes de iniciarem a grande migração para o Norte da Europa, onde vão nidificar. São elas, sobretudo, que levaram José Alves a tornar-se umas das vozes mais críticas ao projecto de implementar um aeroporto civil no Montijo. O efeito sobre estas e outras aves do estuário pode ser devastador, teme.

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Fechar o ciclo

No âmbito do doutoramento, José Alves percebeu que as mesmas aves que ele encontrava no Tejo iam para a Islândia reproduzir-se, na Primavera e no Verão. Através de Tómas Gunnarsson, que hoje é director do centro de investigação da Universidade da Islândia com que José Alves colabora, surgiu a oportunidade de se juntar aos cientistas que ali trabalham. E de levar o seu conhecimento sobre os maçaricos muito mais longe. “Nesse momento, o meu doutoramento era mais sobre a zona de invernada, sobre a alimentação na parte do Inverno. Mas achei importante ver a outra fase do ciclo anual, da reprodução, e por isso vim à Islândia”, explica.

As visitas anuais a este país começaram em 2006 e nunca mais pararam. “Vir para a Islândia permite-nos englobar todo o ciclo anual desta espécie, o que é algo raro, porque as aves limícolas tradicionalmente distribuem-se no Árctico e Subárctico, na época da reprodução. A Islândia permite esta possibilidade de ter este acesso [mais fácil] à reprodução, permitindo ligar ou integrar o que vamos monitorizando na época da invernada. É algo raro, porque conseguimos cobrir toda a área de distribuição da espécie e, inclusive, a migração, quando seguimos estas aves com aparelhos de seguimento de GPS”, conta.

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No Verão, a vegetação crescida esconde os ninhos de falaropo, cuja localização os investigadores já tinham previamente identificado

Ali, nas terras molhadas de Fridland í Flóa, no início de Julho, vemo-las sobretudo a gritar sobre as nossas cabeças, quando nos aproximamos demasiado de um dos ninhos que, por esta altura, estão completamente ocultos pela vegetação que cresceu ao longo de toda a Primavera. Gritam, fazem círculos sobre a cabeça do investigador, não desarmam, na tentativa de proteger as crias do que lhes parece ser uma potencial ameaça.

Munido com uma rede, José Alves aproxima-se, pé ante pé, de uma zona onde sabe existir um ninho de maçarico, na tentativa de capturar momentaneamente o adulto que, naquele momento, está a incubar as crias. E parece mesmo que vai consegui-lo, mas a ave consegue escapar na última fracção de segundo.

Em Portugal, José Alves e a equipa com que trabalha estão habituados a capturar estas aves, com recurso a redes colocadas durante a noite, para as anilhar e, em alguns casos, colocar mini-equipamentos que permitem seguir a sua rota migratória. É graças a esses esforços que depois reconhece alguns desses indivíduos, a mais de 5300 quilómetros de distância, nesta planície islandesa, ou nas zonas costeiras onde eles começam por parar.

É nessas zonas que o trabalho anual de José Alves e dos colegas da Universidade da Islândia começa, por volta de Abril, quando estas planícies que hão-de receber os ninhos ainda estão, muitas vezes, cobertas de gelo. “Em Abril o que fazemos é determinar a data de chegada. A fenologia da chegada de migração. Aí estamos nas zonas costeiras, onde há actividade geotermal e onde encontram alimentação. Depois, acompanhamos a sua reprodução, nomeadamente a colocação dos ovos e a monitorização dos ninhos. O sucesso reprodutor é muito importante, determinar quantas crias são produzidas por casal, para perceber se esta população está em alta produtividade, que é a nossa esperança. Esse é o meu dia-a-dia: ir para os locais de campo, procurar ninhos, monitorizá-los.”

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Graças a esse trabalho de décadas já foi possível aprender mais sobre a espécie. Perceber, por exemplo, que há uma adaptação ao aquecimento global, mas que é feito pelas crias, a que chama “recrutas”, e não pelas gerações mais velhas. Como a disponibilidade de alimento começa mais cedo, fruto do aumento da temperatura no país, os recrutas chegam também cada vez mais cedo, e podem nidificar em locais mais a norte, onde a temperatura mais alta já lhes permite fazê-lo, enquanto os mais velhos continuam a chegar com “o intervalo de três dias” todos os anos, e a manter-se fiéis aos seus locais habituais de reprodução. Isto indica que a adaptação é possível, mas que é lenta, geracional, o que implica tempo. Qualquer mudança demasiado abrupta pode ter consequências devastadoras.

E as mudanças na Islândia, nos 16 anos que José Alves para ali vai, têm sido muito notórias, diz. “Além das mudanças no clima, a Islândia tem tido um boom turístico, sobretudo desde 2010. Há muitas infra-estruturas que são desenvolvidas, mais estradas, mais casas colocadas em determinados locais”. E isto acontece, com mais intensidade no Sudoeste, onde está a área de estudo do investigador português.

A juntar a isto, há uma grande pressão para plantar floresta no país de onde ela estava praticamente ausente, aumentando a sua capacidade de sequestrar carbono. O que, por si só, pode ser uma boa notícia, mas há por lá uma grande discussão sobre que tipo de árvores deve ser plantado - autóctones ou não? - e o surgimento destas novas florestas tem implicações para os predadores das limícolas, como os corvos, que ganham novos locais de acesso para se instalarem e acederem aos ovos e crias destas aves, de que se alimentam.

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Uma das crias de maçarico-de-bico-direito está prestes a eclodir e já abriu um buraco na casca do ovo

Além disso, há toda a mudança no ciclo agrícola. “Há cada vez mais zonas para plantação de feno para o gado, o aquecimento global permite um crescimento mais rápido destas colheitas, e isto faz com que haja estas interacções entre algumas espécies conseguirem responder bem e por outro lado terem algumas dificuldades, nomeadamente o maçarico-de-bico-direito. Em algumas zonas ele já se reproduz em zonas de feno e a colheita é tão cedo que quando o cortam dão cabo também dos ninhos e das crias. Estas alterações são muito notórias nos últimos 15, 20 anos, e são possíveis de seguir, o que nos permite perceber como algumas espécies são vencedoras e outras perdedoras”, diz José Alves.

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O caminho para Hvalfjörður, onde José Alves e outros membros da equipa monitorizam vários ninhos de ostraceiros

Migrações atípicas

O trabalho é, por isso, contínuo. E, no caso dele, já vai muito além dos maçaricos. Entre as espécies que nidificam em Fridland í Flóa estão outras pequenas limícolas, um pouco atípicas em comparação com as restantes espécies desta categoria de aves, e que a equipa em que José Alves está integrado começou a estudar mais recentemente: os falaropos (Phalaropus).

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Verónica Méndez mostra uma cria recém-nascida de borrelho-grande-de-coleira
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Parte do trabalho dos investigadores passa por realizar várias medições às crias, neste caso de ostraceiro, para verificar o seu desenvolvimento

Ao contrário das outras limícolas, os pequenos falaropos não partilham entre o casal a incubação dos seus ovos. A tarefa fica apenas a cargo de um deles, pelo que, quando este se afasta para se alimentar, os ovos ficam sem protecção e sem o calor do progenitor essencial para a incubação. É por isso que o pequeno ovo sarapintado que José Alves segura agora na mão, já com um pequeno buraco na casca, feito pela cria prestes a eclodir, está frio. “Há que aguardar que o pai venha para terminar a incubação desta ave, vamos deixá-la tranquila, a ver se chega a bom porto”, diz, devolvendo-a ao ninho, que volta a ocultar com as plantas em redor.

Mas não é por esta razão que os investigadores estão interessados no falaropo. O que tem motivado os estudos recentes com esta ave que também escolhe a Islândia para nidificar é a sua migração, que cruza várias rotas realizadas por outras espécies.

Ele vai da Islândia até à Gronelândia, acompanha a costa do Atlântico na América do Norte até à Florida, e depois atravessa a zona do Canal do Panamá, para passar o Inverno em mar aberto, entre as Galápagos e a Nicarágua. O que ele nos permite fazer é estudar a conectividade que há a nível global, não só na mesma rota migratória mas entre rotas. Isto faz-nos perceber que qualquer impacto ou afectação destas espécies num local tem efeito nos outros e vice-versa, está tudo ligado. Esta questão da conectividade é muito importante, porque, percebendo que estes habitats estão ligados através destas espécies, dá-nos o entendimento de que é preciso protegê-las como um todo e não apenas num local”, diz.

À tarde, já depois de a primeira chuva ter aparecido, e de termos percorrido vários quilómetros até Hvalfjörður - o Fiorde das Baleias, por ali ainda se matarem e processarem estes animais -, José ajuda a colega e companheira Verónica Méndez a anilhar algumas crias de ostraceiros (Haematopus ostralegus), outra das espécies que a equipa acompanha. Também eles nos ajudam a perceber melhor o mundo e estão ainda a suscitar muitas perguntas entre os investigadores. Porque é que apenas alguns dos elementos da espécie migram, enquanto outros são residentes na Islândia? E até onde vão os processos sociais na decisão de migrar, já que os investigadores perceberam que as crias seguem o pai e não a mãe, fazendo-o também (embora este ponto ainda esteja a ser alvo de um estudo mais aprofundado), com os pais adoptivos?

José Alves e Verónica Méndez anilham duas crias e fazem medições aos ovos de um ninho que acabam de descobrir, encostado a um armazém nas imediações da praia onde outros ostraceiros nidificaram. E ele desespera-se com o carro branco que parou mesmo ao pé de um desses ninhos e que tarda em sair dali, enquanto o casal que o ocupa passeia pela praia e, depois, por um curto caminho do outro lado da estrada. “Não têm ideia de que estão a perturbar a incubação da ave. A atenção à natureza é algo fundamental que nós perdemos. Se estivesse a estacionar o carro e visse o bicho sentado, devia perceber que ele não está só ali sentado, que está ali um ninho, mas não. Estamos a perder esse conhecimento.” A Islândia é um bom sítio para o reaver e José Alves quer continuar por ali para ajudar​.

Este trabalho integra um conjunto de reportagens realizadas com o apoio das EEA Grants.​

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