É a liberdade de expressão, c******!

É fácil defender a expressão da liberdade daqueles com quem concordamos. Difícil é defendê-la para lá do unanimismo do politicamente correto e para além das convicções pessoais de cada um.

Portugal sobreviveu mais de quatro décadas sob um regime de censura e de medo. Era uma sociedade amordaçada em que um exército cinzento de diligentes censores e outros tantos bufos impediam, nos jornais, nas artes e até nos cafés, qualquer retórica política, literária ou estética, que não se enquadrasse no discurso político oficial e na moral dominante.

Um regime que perseguia a arte e os artistas que, ainda assim, resistiram e foram mesmo capazes de antecipar na literatura, nas artes plásticas e na música, a liberdade conquistada em Abril de 74. É também a eles, autores e artistas, que devemos a liberdade.

Talvez por isso, a Constituição de 1976 coloca a liberdade de criação cultural, a par da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, entre os direitos, liberdades e garantias fundamentais.

É este o sentido e alcance da proteção constitucional da liberdade de expressão e criação: para além de um direito individual, esta liberdade é condição necessária para que o Estado se possa afirmar como verdadeiramente democrático e de direito.

Mas a liberdade é um bem tão precioso quanto frágil e, por isso mesmo, precisa de ser defendido com empenho e tantas vezes com coragem. E, como todos os direitos, a liberdade de expressão defende-se pelo seu exercício.

Defender o direito de Abrunhosa mandar f**** o senhor Putin, não é defender o Pedro, é um dever de cidadania que todos temos de proteger a liberdade, independentemente da posição de cada um sobre a personagem visada.

Pedro Abrunhosa não precisa da nossa defesa. Ele é que nos tem defendido contra esse “modo funcionário de viver” de que falava O’Neill. Impõe-se, isso sim, a nossa solidariedade grata por se ter sempre recusado a que a sua música se transforme no papel de embrulho de uma sociedade em que o parecer se sobrepõe ao ser e, sobretudo, ao dever ser.

Mas, liberdade de expressão pressupõe, além da aceitação da diferença, espírito crítico e informação. Infelizmente, cada vez mais, o pensamento unidirecional e acrítico, a exclusão do debate público ou a perseguição nas redes sociais de quem ousa pensar diferente ou simplesmente questionar – com o único objetivo de condicionar ações e opiniões aos apertados limites do unanimismo – têm provocado um perigoso fenómeno de autocensura e de autolimitação, também criativa.

É disto exemplo a tentativa, igualmente condicionadora, de colar os artistas que fazem parte do cartaz da Festa do Avante! à defesa do regime russo.

O que é verdadeiramente tão lamentável quanto deliberado é o hiato lógico e ético de assumir qualquer posição política de um artista, não pelo que este efetivamente disse ou fez, mas pela circunstância de ir atuar em determinado lugar. E, para este ponto, não é relevante apurar qual é, verdadeiramente, a posição do organizador da festa sobre o regime russo.

Não se trata, pois, de criticar a posição assumida por alguém – o que seria absolutamente legitimo –, mas de estigmatizar, em bloco e acriticamente, aqueles que aceitam fazer parte daquele cartaz, transformando agora a arte e o artista em arma de arremesso numa retórica em que falta o argumento e abunda a ofensa, essa sim gratuita, porque desprovida de fundamento ou contexto.

Inaceitável numa sociedade que afirma defender a liberdade de expressão, é o bloqueio – contra o qual, felizmente, muitos já se insurgem – da cultura russa e dos seus atletas e artistas. É que quando as sociedades democráticas se comportam dessa forma, os tiranos já começaram a ganhar, corroendo por dentro os valores democráticos e impondo o imperialismo do pensamento único.

É fácil defender a expressão da liberdade daqueles com quem concordamos. Difícil é defendê-la para lá do unanimismo do politicamente correto e para além das convicções pessoais de cada um. E o contributo da arte e da cultura para a construção e aperfeiçoamento desta liberdade é essencial, até porque é sua função testar, permanentemente, os seus limites.

Nota: Este artigo é escrito em nome pessoal e não traduz a posição de organizações do sector cultural que o autor integra e nas quais assume responsabilidades.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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