Um comprimido anti-ressaca esgotou em 24 horas. Mas funciona?

O co-fundador da empresa que comercializa “o comprimido pré-bebida que funciona” assume que o suplemento não cura a ressaca. Promete apenas, com base num ensaio clínico, “reduzir a absorção de álcool”. “Não acredito naqueles resultados”, diz Félix Carvalho, professor de Ciências Farmacêuticas.

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Adrian Swancar/Unsplash

O mundo de quem bebe álcool quase parou quando, a 4 de Julho, foi lançada uma cura que parecia ser um “milagre” para evitar alguns dos efeitos nefastos do consumo alcoólico, nomeadamente a ressaca. Tanto que, em 24 horas, esgotou o stock destinado a seis meses do Myrkl. Parecia demasiado bom para ser verdade. E, de facto, é.

O Myrkl é um suplemento probiótico que promete “reduzir a absorção de álcool e mitigar potenciais riscos de saúde”, segundo o estudo publicado no qual o produto se alicerça. “A ressaca é uma condição médica e o nosso produto é um suplemento, não visa o impacto do consumo excessivo de álcool. Eu acho que isso está muito claro”, diz Frederic Fernandez, co-fundador do Myrkl, em declarações ao P3. Ou seja, o produto cura a ressaca? “Não”, assevera.

De facto, em nenhuma parte do ensaio clínico publicado, ou na divulgação da marca, foi mencionada a cura da ressaca. Inicialmente, o suplemento alimentar foi publicitado como “a pílula pré-bebida que funciona”, algo que entretanto já foi retirado do site oficial para “garantir que não há confusão”, justifica o co-fundador.

Uma ressaca, como é sabido, diz respeito aos efeitos sentidos no dia após a ingestão de uma quantidade elevada de álcool e pode manifestar-se de várias formas: dores de cabeça, mal-estar, náuseas. Um fenómeno que tem várias causas, como refere o professor catedrático Félix Carvalho, da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto. Sendo o metabolismo do álcool, e a posterior formação de compostos tóxicos (nomeadamente o acetaldeído), “uma das mais importantes”, há ainda a “inflamação e a modificação dos níveis de neurotransmissores no sistema nervoso”. “Qualquer método que faça diminuir a absorção do álcool, naturalmente que irá diminuir também a ressaca”, aponta o professor.

Percebe-se, portanto, que tenha sido feita a associação. Porém, segundo o co-fundador da Myrkl, a ligação entre o produto e a ressaca é até uma preocupação, mesmo ao nível da “saúde pública”. “A nossa posição é muito clara: o álcool é uma substância tóxica, achamos que deveria ser proibido. As pessoas que estão mais interessadas no nosso produto tomam apenas duas bebidas de vez em quando e têm dificuldade em metabolizá-las. Não é virado para consumidores excessivos, nem é nisso que eles estão interessados.”

Quanto à prevenção da ressaca, Félix Carvalho certifica: “A única forma que eu vejo é a diminuição da ingestão de álcool”.

Esclarecida esta questão, passemos ao que o suplemento se propõe fazer: “reduzir a absorção de álcool e mitigar potenciais riscos de saúde”. Com resultados “no mínimo discutíveis”, o ensaio clínico publicado “tem demasiadas falhas para se poder chegar a este tipo de conclusão”, constata Félix Carvalho, também presidente da Secção Regional Norte da Ordem dos Farmacêuticos (SRN-OF). “Eu acho que ninguém demonstrou, e estes autores tampouco, que há um maior metabolismo do álcool por estas bactérias que existem no probiótico”.

Quais são as falhas?

Importa primeiro reiterar que o que está em causa é um suplemento alimentar, não um medicamento. “Os probióticos não são aprovados pelas agências de medicamentos, portanto farão parte da legislação sobre suplementos alimentares, que não tem o mesmo tipo de exigência que os medicamentos”, explica o professor universitário.

Essencialmente, o suplemento Myrkl (AB001) consiste em cápsulas compostas por Bacillus subtilis e Bacillus coagulans, duas bactérias que se libertam e instalam na parte superior do trato intestinal, onde permanecem durante um dia antes de serem eliminadas, diz o estudo. A tarefa das bactérias é decompor o álcool etílico em dióxido de carbono e água, “reduzindo assim a absorção adicional de álcool”. “Consequentemente, espera-se que menos álcool seja absorvido pelo corpo, e que os danos nos órgãos provocados pelos produtos de decomposição do álcool sejam diminuídos”, afirmam os autores.

Este ensaio clínico foi realizado “de forma independente” por um instituto na Alemanha, salienta Frederic Fernandez, ainda que financiado pela De Faire Medical, empresa sueca criadora do Myrkl. “Não é porque pagas que tens uma palavra a dizer na metodologia. Os resultados são revistos ​​por um conselho central independente e depois são partilhados”, garante o co-fundador.

Agora, as falhas. Em primeiro lugar, o que foi quantificado no ensaio clínico foi o etanol, nunca os respectivos metabolitos (produtos da degradação), como o acetaldeído, que, se acabarem por ser absorvidos, têm também impacto, nota Félix Carvalho.

Depois, a amostra do estudo foi composta por 24 pessoas, “13 homens e 11 mulheres”. Porém, nos gráficos com os resultados não está feita essa diferenciação. Quando questionado sobre este ponto, o co-fundador disse não saber o porquê. “Nós sabemos que há uma susceptibilidade diferente entre o homem e a mulher relativamente aos níveis de álcool que são atingidos no organismo. Normalmente, o homem metaboliza mais rapidamente e os níveis de etanol são diferentes”, diz Félix Carvalho. “Portanto, colocar tudo junto parece-me muito estranho”, acrescenta.

Os 24 indivíduos estiveram sete dias sem consumir bebidas alcoólicas, durante os quais tomaram duas cápsulas diárias do AB001 ou de um placebo. Já no local do estudo, comeram um “pequeno-almoço leve” e, posteriormente, ingeriram 0,3 gramas de álcool (vodka) por cada quilograma de massa corporal. Alguém que pese 70 quilogramas consumiria 21 gramas de álcool, ou seja, 2,1 unidades de bebida padrão uma cerveja, por exemplo, tem 1,7.

Num estudo em que o objectivo é verificar se, por acção do probiótico, a concentração de álcool no sangue diminui, em dez dos casos (cerca de 42%) a quantidade de álcool ingerida não levou sequer “a concentrações de álcool relevantes mensuráveis”, referem os autores. Por essa razão, não contaram com os indivíduos para a análise. “Com 14 pessoas, não se pode tirar conclusão absolutamente nenhuma”, sentencia Félix Carvalho.

A quantidade de álcool ingerida é assumida pelos próprios como uma limitação. “Nós reconhecemos isso, não temos nenhum problema. Quando tens um suplemento, não precisas de fazer ensaios clínicos. Não é porque os fizemos que devemos ser culpados por isso. A conclusão que tirámos foi que as descobertas são interessantes e boas o suficiente para lançarmos [o suplemento], estamos realmente convencidos com o produto”, afirma o co-fundador.

O que se torna difícil, relata o professor, é compreender as conclusões retiradas, apesar das limitações. A acrescentar, “a estatística está errada”, sublinha, e em certos grupos “há intersecção de resultados”, ou seja, o valor relativo à toma do suplemento e do placebo são muito próximos. “Estou habituadíssimo a fazer trabalhos experimentais e gráficos, isto para mim é um gráfico de um estudo muitíssimo mal realizado”, declara.

A própria revista onde o artigo foi publicado, Nutrition and Metabolic Insights, destaca Félix Carvalho, “existe há muito tempo e não tem índice de impacto”. “Não conseguiram submeter a revistas com maior índice de impacto”, continua, o que, “tendo em conta a importância do assunto”, é contra “a tendência”. “Eu não acredito naqueles resultados”, conclui.

Já Frederic Fernandez avança que estão a ser preparados ensaios clínicos numa “maior escala”. “Estamos comprometidos a entender melhor o nosso produto, não somos pessoas arrogantes”, defende. Entretanto, o produto vai voltar a estar disponível para pré-venda, ainda sem envio para Portugal.

Texto editado por Ana Maria Henriques

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