Ainda sobre o debate em torno da linguagem inclusiva

Uma real preocupação com as desigualdades socioeconómicas que tocam as vidas das pessoas racializadas e LGBTQIA+ deveria tornar evidente o porquê da importância da luta pelas palavras.

O artigo Porque é que “todes” não é todos, nem todas?, de José Pacheco Pereira, é expressão de uma velha querela sobre a linguagem inclusiva que, neste caso, teve por pretexto a campanha “ABCLGBTQIA+” da Fox. Muito do que havia criticar foi já exemplarmente feito, mas não posso deixar de dizer, o quão sintomático é que um homem branco cisgénero e heterossexual se sinta oprimido com a linguagem inclusiva e queira dizer às pessoas negras, roma/ciganas e LGBTQIA+ como se luta ou que um dos mais estabelecidos opinion makers se sinta “excluído” com a chegada à nossa praça de outras pessoas e ideias.

Compreende-se o incómodo da perda de privilégio, e o autor está no direito de discordar, mas a argumentação avançada parece, por vezes e no mínimo, contraditória.

Defende o uso de palavras que sabe serem historicamente insultuosas para determinados grupos, a custo do princípio da não-discriminação (que essas pessoas se sintam com isso intimidadas e excluídas, isso é problema menor), mas considera perigoso para democracia e para a linguagem usar as palavras que esses grupos definiram para si como emancipatórias.

Recordemos que quando a TVI convidou Mário Machado, em 2019, para uma entrevista, Pacheco Pereira considerou que, apesar de incómoda, era liberdade de expressão e quando o SOS Racismo e o Sindicato dos Jornalistas usaram instrumentos à sua disposição, junto da opinião pública e da ERC, para criticar a TVI, considerou “perigoso” o apelo à censura”.

Não esqueçamos também, como outros já fizeram, que aquando do assassinato de Alcindo Monteiro, o mesmo autor escreveria que se tratava de “um grave incidente racista que, não sendo isolado (...), não justifica, apesar de tudo, a dimensão apocalíptica que lhe querem dar”.

Na crítica à linguagem inclusiva reiteradamente se acusa o movimento antirracista e LGBTQIA+ de um suposto esquecimento das desigualdades socioeconómicas, mas depois nada se avança sobre elas. Ora, uma real preocupação com as desigualdades socioeconómicas que tocam as vidas das pessoas racializadas e LGBTQIA+ deveria tornar evidente o porquê da importância da luta pelas palavras.

Re-nomear e resignificar é parte desses combates políticos porque é uma forma de romper com séculos de insulto, porque cria formas de identificação e consciencialização potenciadoras da organização coletiva para, entre outras coisas, melhorar as condições materiais de vida. Sem essas formas de organização coletiva viveremos numa sociedade mais pobre e mais antidemocrática. Acresce que no materialismo marxista, que o autor convoca, a subjetividade não está ausente, basta lembrar a dupla “classe em si” e “classe para si” e a relevância da “consciência de classe”.

Por outro lado, enquanto as categorias étnico-raciais e LGBTQIA+, assim como suas intersecções (sim, pessoas racializadas LGBTQIA+), estiverem ausentes da política pública, a nossa capacidade de monitorizar as desigualdades socioeconómicas é mais débil, assim como o são as medidas para a igualdade no emprego, educação, habitação, saúde, justiça ou na assistência social.

É contraditório que um texto preocupado com as condições socioeconómicas, a única coisa que tenha a dizer sobre a União Negra das Artes é acenar com o mito do “racismo reverso”, ao invés de aplaudir uma organização que, entre outras coisas, trata de questões como o emprego e estatuto profissional das pessoas negras no mundo das artes. Achará também mal que as mulheres se organizem em coletivos feministas ou os trabalhadores em sindicatos, serão estas formas de machismo e capitalismo reversos?

Mas se o texto pretende recordar à esquerda que o “verdadeiro” marxismo dá preponderância à dimensão socioeconómica, poderia discutir também as perspetivas marxistas que, desde cedo, procuraram articular anticapitalismo, antirracismo e anticolonialismo. Longe de ser apelidada de “identitarista”, a III Internacional Comunista (IC) dos anos 1920s e 1930s reconhecia aquela que ficou conhecida como a “Questão Negra”, onde se destacaram marxistas negros como George Padmore.

Entre outras coisas, defendia-se que a luta contra o racismo e colonialismo era central para a derrota do capitalismo e que os negros deveriam ter formas de organização própria dentro da IC. Esse património haveria de ter o seu papel, mais tarde, nos movimentos de libertação africanos e no movimento negro na diáspora. A história teve os seus altos e baixos, e especificidades nacionais, mas não pode ser obliterada, como se antirracismo e anticapitalismo fossem opostos.

Outra das ideias clássicas do marxismo é que o colonialismo, isto é, o saque da força de trabalho e recursos de povos de várias partes do mundo, constituiu a “acumulação primitiva” que deu origem ao capitalismo e molda ainda hoje a divisão internacional de trabalho e as formas de circulação e acumulação de capital. Se hoje, em Portugal, as pessoas negras e roma/ciganas são, desproporcionalmente e na sua esmagadora maioria, pobres é porque pela sua condição de racializadas foram historicamente, por via da escravatura, colonialismo e anticiganismo impossibilitadas de aceder aos frutos do seu trabalho, aos meios de produção, à propriedade e às profissões mais bem remuneradas.

Parte da fortuna da burguesia portuguesa deve-se às condições privilegiadas de exploração que teve por cá e, ainda mais, em África, no período colonial. Não se trata apenas de resquícios do passado, as pessoas roma/ciganas estão brutalmente excluídas do mercado de trabalho e da habitação condigna porque ninguém lhes dá trabalho. A maioria das pessoas negras está segregada nas profissões mais mal pagas, desprestigiadas e desgastantes, as mesmas que, em termos relativos, já executavam no tempo colonial.

Isto não silencia o empobrecimento a que estiveram e estão sujeitas a maioria das pessoas brancas, soma. Não é silenciando as reivindicações das pessoas racializadas e LGBTQIA+ que tornamos a luta anticapitalista mais forte, antes pelo contrário.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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