A indígena favelada que canta pela sobrevivência: “A colonização me trata por Aline, para quem me conhece sou Kaê”

Kaê Guajajara junta o português com o ze’egete para denunciar a política de genocídio, etnocídio e ecocídio no Brasil. Actuou em Portugal e questiona: “Do que adiantou tanta colonização se eu estava ali cantando?”

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Do povo Guajajara, e de uma aldeia indígena sem território demarcado situada no nordeste brasileiro, nasceu Kaê. A indígena depressa se tornou favelada quando, aos nove anos, fugiu do Maranhão com a família para o Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. “Fomos parar na favela fugindo dos madeireiros”, relembra Kaê.

A partir daí, teve de abandonar a sua cultura para se encaixar nos padrões da cidade. “A minha própria mãe falava ‘precisamos de ser normais, senão as pessoas vão nos matar. Não vamos conseguir trabalho para comer nem lugar para morar’”, conta. “Mas o que é ser normal? É estar reproduzindo, na sua perfeita cópia, as regras sociais implementadas através da colonização.”

Ao analisar o documento de identificação da indígena, é possível perceber os reflexos dessa cicatriz histórica. Apesar de ser um direito garantido na Constituição, vários cartórios brasileiros recusam-se a incluir nomes e sobrenomes étnicos no momento do registo civil. Por causa disso, Kaê tem dois nomes: o “nome de branco” e o seu nome indígena. “A colonização me trata como Aline, mas para quem me conhece mesmo eu sou Kaê”, afirma.

Todos os esforços para ser alguém “normal” não impediram Kaê de ser marginalizada. “Ser indígena favelada é crescer sem acesso a políticas públicas, sem acesso à sua história, sem saber para onde está indo”, há um “plano que já está em curso há muito tempo de etnocídio e genocídio, seja nas terras não-demarcadas, nas terras demarcadas ou na favela”.

Foi através de projectos sociais que Kaê Guajajara começou a escrever músicas, como forma de activismo. Numa mistura de rap, hip hop e instrumentos indígenas, Kaê junta o português com o ze’egete (língua dos Guajajaras) para dar vida às letras que denunciam uma política de genocídio, etnocídio e ecocídio no Brasil. “Com a melodia e a letra ecoando, as pessoas páram para pensar sobre o assunto. Precisei da harmonia e as palavras no tom certo para ser ouvida”, reitera.

Quando questionada sobre o teor político das suas canções, a indígena responde: “Não podemos nos acostumar com a violência. [Vivemos numa] guerra por ideais e por território”. “Eu até queria cantar sobre coisas boas, mas que momento eu tenho para isso desde a invasão? Ser indígena no Brasil é isso: ter que lutar pela sobrevivência.”

Na terra do colonizador

Com a sua “Música Popular Originária” (género musical criado pela artista), a Guajajara esteve em Portugal a 8 de Julho, no fecho da Porto Summer School on Art & Cinema, uma escola de Verão organizada pela Universidade Católica. “Todos que estavam no concerto, até os funcionários, estavam muito abertos a trocar ​[experiências]”, diz Kaê. “Ainda que eles não soubessem a forma certa de tratar, de falar, eles estavam dispostos a aprender.”

Apesar de ter sido bem recebida no meio académico, a indígena conta que sofreu tantos ataques quanto no Brasil. “Era bem claro que eu estava na terra do colonizador. As pessoas não entendiam o que eu estava fazendo ali. Eu sei que deve ser chocante encontrar um indígena vivo em 2022, mas precisamos nos acostumar com essa realidade.”

Na visão da artista, a desinformação é um dos maiores males do país. “Eles não querem contar que eles são assassinos, que eles são os genocidas. Eles querem contar uma vitória em cima disso”, diz. “Mas como pode um dos maiores genocídios e ecocídios do mundo ser conquista? E para quê serviu essa conquista, por acaso Portugal está tão melhor que o Brasil? Do que adiantou tanta colonização se eu estava ali cantando?

Indígena não existe mais. Agora o que existe é a ‘cidade’

Desde a chegada dos colonizadores ao Brasil, os indígenas sofrem com a deslegitimação e a exclusão da sociedade. Seja na aldeia ou na cidade, “os ataques não param”, alerta Kaê. “Os meus parentes que estão dentro da aldeia estão sendo mortos pelas mesmas balas que são atiradas dentro da favela. Estamos sendo cercados de todos os lados.”

A banalização das suas histórias e a anulação das suas realidades actuais são, para Kaê, o motivo de muitas pessoas nem sequer saberem da sua existência. “Os brasileiros nos encontram na rua e perguntam se nós somos de verdade”, diz. “As pessoas não imaginam que estamos aqui coexistindo. [Para eles], indígena não existe mais. Agora o que existe é a ‘cidade’.”

Protagonistas de diversos sambas-enredo (música base de desfiles de carnaval) e inspiração para disfarces de Carnaval, os indígenas só são lembrados na avenida dos desfiles. “[Durante o Carnaval] as pessoas querem imitar a nossa estética, fazer os nossos grafismos. Mas quando sou eu com um cocar [adorno étnico] ou uma pintura na rua, posso ser morta por isso.”

Ainda assim, Kaê Guajajara tem boas expectativas para o futuro dos indígenas no Brasil. “Muito já foi falado e exposto. Escolas já procuram aldeias para saber da história real, para poder ensinar dignamente sobre as nossas histórias”, diz, antes de concluir: “[Essa atitude pode ser] uma janela de exposição da verdadeira realidade, e não mais uma exposição de racismo e morte.”

Texto editado por Renata Monteiro

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