Eu sou jornalista!

A minha sincera esperança é que a cobertura jornalística que tem sido feita da guerra na Ucrânia faça com que o público renove a sua confiança na comunicação social e no jornalismo, em Portugal e na Europa.


Ihor Hudenko, Yevhenii Sakun, Zoreslav Zamoysky, Roman Nezhyborets, Viktor Dedov, Oksana Haidar, Brent Renaud, Maks Levin, Oleksandra Kuvshynova, Pierre Zakrzewski, Oksana Baulina, Mantas Kvedaravičius, Yevhenii Bal, Vira Hyrych e Frédéric Leclerc‑Imhoff.

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Jornalistas tentam abrigar-se durante bombardeamento em Irpin Carlos Barria/Reuters

Estes são, de acordo com os dados do Comité para Protecção de Jornalistas, os profissionais da comunicação social que desde o início da invasão russa da Ucrânia morreram no exercício da sua profissão. São 15 nomes e 15 histórias por certo diferentes, mas todos, independentemente do género, da idade, da nacionalidade, da organização ao serviço da qual se encontravam, têm algo em comum: eram jornalistas, fotojornalistas ou trabalhavam para os media.

Estes homens e mulheres merecem a nossa sentida homenagem e o nosso tributo colectivo, na medida em que pereceram para que nós – o mundo – pudéssemos testemunhar em tempo real e sem sair do sofá os acontecimentos que se desenrolavam na Ucrânia e que abalaram e continuarão a abalar o nosso modo de vida de formas que ainda nem sequer somos capazes de compreender.

Se estas mortes devem merecer lástima de todos, a verdade é que elas me tocam mais profundamente. A minha carreira, apesar de ser hoje na advocacia, começou, enquanto jornalista, no extinto O Primeiro de Janeiro, quando tinha 18 anos. Tenho a firme convicção de que um jornalista, tendo-o algum dia sido, nunca mais deixa realmente de o ser, razão pela qual interpreto e sinto a perda destes jornalistas como a morte e o sofrimento de colegas de profissão. Não fossem os sempre imprevistos caminhos a que a existência nos leva, poderia ser eu a estar na linha da frente e a sofrer semelhante destino.

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Ao mesmo tempo que lamento estes precoces fins, não posso deixar de sentir, hoje, um enorme orgulho no jornalismo. Como muitos já salientaram, esta é a primeira guerra transmitida em directo e ao minuto para todo o mundo, com centenas de repórteres no terreno, quer seja na linha da frente do conflito, quer seja na retaguarda. Praticamente todos os órgãos de comunicação social europeus (pelo menos os portugueses) deslocaram jornalistas para a Ucrânia que, arriscando mais ou menos, têm feito um trabalho maioritariamente excepcional, tendo em conta as condições existentes. Podendo legitimamente recusar ir arriscar a vida e a integridade física, os nossos jornalistas têm optado pelo caminho inverso, notando-se em todos uma abnegada vontade de ir para junto dos acontecimentos e noticiá-los.

A minha sincera esperança é que a cobertura jornalística que tem sido feita da guerra na Ucrânia faça com que o público renove a sua confiança na comunicação social e no jornalismo, em Portugal e na Europa.

Desde que deixei de exercer esta nobre profissão o jornalismo mudou muito e nem sempre mudou para melhor. Não se trata apenas de uma questão de formação, de cultura, de ética ou de erudição, trata-se sobretudo de uma profunda alteração na forma como se produzem, reproduzem e divulgam notícias. Os canais de informação 24/7, a Internet e especialmente as plataformas digitais vieram colocar pressões e desafios gigantes à tradicional missão de mediação cometida à comunicação social. O imediatismo venceu a investigação séria e aturada, o estéril comentário da actualidade superou a reflexão aprofundada, a informação confunde-se com a opinião e os factos diluem‑se no penoso caminho da pós-verdade e da polémica do dia de nulo valor noticioso.

Além disso, a promiscuidade entre o “quarto poder” e o poder político e económico, a par de outros factores, tem, nas últimas décadas, feito recuar os níveis de confiança da opinião pública na comunicação social, a qual prefere beber o seu shot noticioso dos meios sensacionalistas ou, pior, das redes sociais.

Não obstante o lúgubre diagnóstico, acredito que esta guerra e os tempos difíceis que ela inaugurou no velho continente estão a mostrar o quão importante o jornalismo e a comunicação social são para uma democracia informada e para sociedades livres, justas e iguais.

Diz-nos o Código Deontológico que «o jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade», destacando a sisifiana tarefa dos jornalistas em nos ajudarem a compreender o mundo em que vivemos.

É, pois, vendo o trabalho dos meus colegas na Ucrânia e a dignidade e brio com que o fazem que hoje posso dizer com orgulho: eu também sou jornalista!

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