Chega de esquemas: encaremos o passado. Resposta a João Miguel Tavares

João Miguel Tavares argumenta que a responsabilidade pelas falhas do Estado angolano pós-independência pertence exclusivamente aos angolanos. Esta desresponsabilização pelo passado não é nova, mas como os argumentos que a sustentam são utilizados tantas vezes à mesa do café, serve-nos de pretexto para os passarmos mais uma vez a pente fino.

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© SIPHIWE SIBEKO / Reuters

No artigo intitulado A cleptocracia angolana e os 500 anos de colonização, publicado dia 12 de Julho no PÚBLICO, João Miguel Tavares argumenta que a responsabilidade pelas falhas do Estado angolano pós-independência pertence exclusivamente aos angolanos. Esta desresponsabilização pelo passado não é nova, mas como os argumentos que a sustentam são utilizados tantas vezes à mesa do café, serve-nos de pretexto para os passarmos mais uma vez a pente fino. O argumento de João Miguel Tavares, querendo desmentir Daniel Oliveira, é simples. Diz-nos que os portugueses ocuparam “pequenos entrepostos na costa” e que a “colonização propriamente dita” começou só na década de 1920. Como da década de 1920 até hoje os anos de domínio colonial foram só pouco mais de metade, não teriam já tempo de pôr as coisas em ordem?

É comum descrever o princípio da história do tráfico transatlântico de escravos em 1444, quando chegaram a Lagos, Portugal, 235 escravos. O muito citado e respeitado Transformations in Slavery: A History of Slavery in Africa tem um mapa relevante sobre a origem dos escravos africanos traficados. Os territórios que são hoje Angola, Togo, Gana e Benim são os únicos que forneceram números de escravos equivalentes a entre 100 a 300% da população (total estimada em 1400). Nenhum outro território forneceu mais escravos.

Patrick Manning fez uma estimativa da população total do Ocidente e Centro-Ocidental Africano no princípio do século 18. Era, segundo ele, de 22 a 25 milhões. Ele estima também que ela teria sido de 46 a 53 milhões caso não tivesse havido tráfico de escravos. Ou seja, a população foi reduzida a metade. Estes números não contam só quem foi raptado ou morto directamente, mas também as mortes como resultado das guerras no interior do continente africano, resultado das armas fornecidas aos africanos como moeda de troca pelos escravos que os europeus lhes compravam. Essa busca desesperada por escravos teve até consequências legais (a escravatura passou a ser pena comum até para pequenos delitos, por exemplo). As consequências devastadoras do rapto de grande parte da população facilmente se entendem como seriamente disruptivas. Mas João Miguel Tavares, aparentemente, não o considera. Pensa que a colonização começou só na década de 1920.

Daron Acemoglu e James Robinson investigam, há mais de 20 anos, a importância da inclusividade das instituições políticas na qualidade e prosperidade das democracias. Publicaram em 2007 Porque Falham As Nações, de onde vêm aliás as referências acima sobre escravatura. A tese central do livro é a de que as instituições políticas de uma dada nação tanto podem evoluir para um ciclo virtuoso, como para um ciclo vicioso. Uma dada nação desenvolve um ciclo virtuoso quando o aumento de inclusividade das instituições é por sua vez aumentada por novas reivindicações por minorias ou grupos de interesse não representados até então, aumentando a igualdade de oportunidades e participação cívica. Os exemplos são vastos. Pelo contrário, o ciclo vicioso é um ciclo político de degradação institucional que, ao capturar a exclusividade do poder das instituições de uma nação, as faz servir unicamente os seus interesses, concentrando por sua vez cada vez mais recursos para aprofundar essa acumulação de poder aumentando as desigualdades sociais. O resultado de um ciclo vicioso é a pobreza e a degradação da qualidade de vida da população, enquanto uma pequena elite enriquece loucamente.

A descolonização e consequente passagem do poder dos colonos para as elites de países independentes foi, na grande maioria dos casos na África Subsariana, uma grande oportunidade para que os elementos mais implacáveis de cada sociedade se apoderassem dos recursos financeiros, militares e das instituições coloniais (com leis, ethos e objectivos de índole colonial) para recriar as sociedades extractivas coloniais, servindo as novas elites no lugar dos colonos.

É possível transformar um ciclo vicioso num ciclo virtuoso. Mas é acontecimento raríssimo, porque implica contrariar sistemas políticos que monopolizam todos os recursos do Estado para se perpetuarem no poder. As sucessivas visitas de presidentes portugueses a países dos PALOP, fascinados pelo “carinho” que recebem de regimes extractivos que prendem dissidentes, decididamente não ajudam a melhorar as hipóteses de transformação.

Porque Falham As Nações não é uma bíblia de wokismo. É, aliás, ignorado por quase todo o pensamento anticolonial contemporâneo. O livro sublinha a importância da propriedade privada, da eficiência dos serviços do Estado e da liberdade individual para que uma nação atinja uma prosperidade sustentável. É um bastião de defesa de mantras liberais. Será também por isso que foi nomeado para o prémio do Financial Times e da Goldman Sachs para livro de negócios do ano de 2007. Surpreende-me que João Miguel Tavares não o tenha lido.

A discussão sobre o passado já não é território de revolucionários e subsidiodependentes, mas de cidadãos comuns, como eu, que estão fartos desta inocência sonsa, e sabem que para o avanço de uma nação é preciso estudar a história e lidar com ela.

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