Um recado

Somos cansativos. É o amor que se cansa de nós.

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"Os telefones, antes, e os telemóveis depois, contariam muitas versões diferentes das histórias de amor que pensámos ter vivido" Maria Inês

Lembro-me de todas as vezes em que fiquei refém do meu telefone à espera de um sinal qualquer. De repente vem-me à memória uma canção batida que chegava com ecos de Manchester e em que se dizia: “Dá-me um sinal se puderes. Sejamos amantes supremos.”

O amor deixa-nos agarrados ao telefone. Repito propositadamente a palavra telefone antes de dizer telemóvel. O telemóvel passou a ser a carta que nunca mais foi escrita, os rolos que ficaram por revelar, as memórias de vários anos perdidas num táxi sujo — um apagão súbito. Meia vida engolida na sofreguidão do telemóvel.

Quando o telefone chegou a casa dos meus pais, foi como se tivéssemos um novo animal de estimação. Eu queria que ele tocasse para me sentir integrada, para sentir que, tal como algumas pessoas, eu também já tinha aquele toque a soar ali perto.

Não me lembro de longas chamadas naquele corredor. O meu pai era capaz de repetir várias vezes, indiferente ao facto de eu estar a falar com alguém, “o telefone é só para dar um recado”. E dizia isto trazendo-me os nervos desnecessários que assimilei e que, provavelmente, me fazem hoje não gostar de falar ao telemóvel. A energia perde-se numa chamada para matar o tempo. A ter de ser, que seja para o recado.

Nós já passámos por tantas fases diferentes nesta relação com o telemóvel. Quando foi novidade, até gostámos mais do objecto do que das pessoas com quem ele nos punha em contacto.

Depois passámos à fase em que achávamos que talvez desligando e ligando de novo a mensagem que aguardávamos entrasse. Mais tarde chegaram os dias da angústia e da consciência sabendo que nunca mais havíamos de ter aquele número no nosso ecrã. Tinha sido apagado. Aprender a viver com isso dói tanto, que o corpo pode estremecer quando ouvimos um toque mesmo que seja na carteira de outra pessoa.

Lembro-me bem da tal noite em que deixei o telemóvel num táxi sujo. Acabou por ser um alívio.

Vivemos à míngua de um sinal qualquer, como se o telemóvel validasse a nossa existência: o túnel que nos leva à luz ainda a meio do caminho.

Das imagens que tenho em loop na minha cabeça, e que roubei ao cinema, está lá sempre o encontro de Ben e Sera numa rua de Las Vegas; a entrada de Linda na farmácia gritando a raiva de uma vida ao balcão; Elio ao telefone chorando o desgosto anunciado do seu primeiro amor com Oliver. Eu chorei com ele enquanto me lembrava das dores iguais que entram no abecedário da dor. Todos sabemos essas letras de cor. O amor também já foi um telefonema desses que vieram quando queríamos que não viessem. Maldito para sempre esse momento em que nos chamaram dizendo: “É para ti.” O abismo ali tão perto.

Neste presente tão incerto em que já ninguém nos passa o auscultador, a angústia em forma de insónia instala-se à espera de sermos bafejados pela sorte do amado desaparecido. Aquele ou aquela que nunca mais disse nada depois de nos ter deixado com o olhar pregado ao ecrã relendo (para encontrar outros significados) as mensagens trocadas dias antes. “Parecia tudo tão bem.” Suspeito que já teremos ouvido ou dito esta frase várias vezes enquanto os olhos cansados dão mais uma oportunidade, não ao amor, muito menos ao amor-próprio, mas ao telemóvel. Somos cansativos. É o amor que se cansa de nós.

Os telefones, antes, e os telemóveis depois, contariam muitas versões diferentes das histórias de amor que pensámos ter vivido. No passado queríamos preservar aquele tom de voz que nos disse “mas quero ser teu amigo”, achando que talvez ele estivesse a mentir a si próprio porque nos convinha. Chegados às palavras escritas que se pode perder num táxi sujo, é-nos fácil inventar as tais leituras que não estão lá, mas que, eventualmente, nos podem dar força para seguir em frente.

De facto, a vida é demasiado séria para perdermos tempo com fins que não foram sequer olhos nos olhos, mas é mais fácil dizer tudo isto com a dor bem arrumada.

“O telefone é só para dar um recado.”

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