Proposta de lei para a recuperação da “natureza”: mais uma casa que começa pelo telhado

A Comissão Europeia pretende criar uma lei de recuperação da natureza que ignora a importância de associar a geodiversidade às ações e políticas de recuperação de ecossistemas.

Como é do conhecimento geral, uma casa degradada e a necessitar de obras precisa de uma intervenção em todo o edifício. De pouco adianta recuperar paredes e janelas, se a chuva entra abundantemente pelo telhado ou vice-versa.

Vem isto a propósito da proposta da Comissão Europeia para a criação de uma lei dedicada à recuperação da natureza, uma iniciativa que ignora a parte não viva dessa natureza, o que só pode revelar um enorme desconhecimento acerca do assunto. Apresentada a 22 de junho, esta proposta de lei pretende:

1. A recuperação contínua, a longo prazo e sustentada da natureza biodiversa e resiliente nas zonas terrestres e marítimas da União Europeia, através da recuperação dos ecossistemas;

2. Alcançar os objetivos globais da União Europeia em matéria de mitigação das alterações climáticas e adaptação às alterações climáticas;

3. Contribuir para os compromissos internacionais da União Europeia.

O preâmbulo deste documento é composto por 19 páginas e 78 parágrafos, o que constitui mais um notável exemplo da verborreia das organizações europeias, que, certamente, procuram assim cativar o cidadão europeu para a necessidade de se envolver ativamente na resolução dos grandes desafios europeus!

Esta proposta de lei trata um tema pouco relevante e não prioritário? Todos concordamos que a resposta é não: finalmente, parece termos compreendido que o bem-estar e a prosperidade dos seres humanos dependem de como usamos os recursos naturais, boa parte deles finitos e não renováveis. O grande problema é que esta proposta de lei mostra, uma vez mais, como as instâncias europeias possuem um conceito truncado do que é a natureza, parecendo ignorar como os seus elementos vivos e não vivos estão inexoravelmente interligados e que os problemas que afetam uns dificilmente podem ser resolvidos sem que os outros sejam diretamente envolvidos nas soluções propostas.

A proposta de lei reconhece que “apesar dos esforços da União Europeia e internacionais, a perda de biodiversidade e a degradação dos ecossistemas continuam a um ritmo alarmante, prejudicando as pessoas, a economia e o clima” e que “até agora, a União Europeia não conseguiu travar a perda da biodiversidade”. Esta proposta explicita o conceito de ecossistema clarificando que se trata de “um complexo dinâmico de comunidades vegetais, animais e de microrganismos e o seu ambiente não vivo, interagindo como uma unidade funcional, e inclui tipos de habitat, habitats de espécies e populações de espécies” (o sublinhado é do autor deste texto).

Isto significa que pretender recuperar ecossistemas sem ter em conta o “ambiente não vivo” não é certamente a melhor estratégia. Mas o que é o ambiente não vivo? Basicamente, é o que é designado genericamente por geodiversidade, ou seja, a variedade de minerais, rochas, solos, formas de relevo, paisagens e processos associados. Surge assim inevitavelmente a questão: por que razão as políticas europeias relativas à natureza e sua proteção e recuperação continuam a não contemplar a geodiversidade?

A verdade é que esta proposta de lei não refere, uma única vez, a importância de associar a geodiversidade às ações e políticas de recuperação de ecossistemas. Consequentemente, não são estabelecidas metas, objetivos, indicadores, nem é obviamente previsto financiamento para ações específicas relativas à geodiversidade, a base de todos os ecossistemas.

Apenas a título de exemplo, o artigo 7º é dedicado à recuperação da ligação entre os rios e as funções naturais das planícies de inundação. Certamente uma questão importante, como ficou claramente demonstrado em agosto de 2021, na Alemanha e em outros países do centro da Europa, quando os rios ocuparam, de forma natural, as planícies de inundação, agora ocupadas por edifícios de habitação e outras infraestruturas, tendo como infelizes consequências um significativo número de vítimas e estragos materiais elevadíssimos. O conhecimento da dinâmica fluvial, o tipo de sedimentos existente e o modo como são transportados pelos rios constituem um exemplo simples que ilustra bem por que razão temos de trazer a geodiversidade e os geólogos para o campo da resolução de muitos problemas.

Esta cegueira das instituições europeias relativamente à geodiversidade não é nova. As políticas de conservação da natureza, as estratégias dedicadas à gestão da água e à conservação de solos e os requisitos necessários na avaliação de impacte ambiental são praticamente omissas no que respeita aos elementos e processos geológicos. Parece que a geodiversidade não é crucial para garantir a nossa sobrevivência e prosperidade, para nos permitir realizar a transição energética, a adaptação à mudança climática, a despoluição dos solos, água e ar, e tantos outros enormes desafios que temos de enfrentar. Mas é...

Está na hora da União Europeia e das organizações não governamentais dedicadas ao ambiente retirarem a venda, que, parece, até hoje lhes tem impedido a visão! Talvez assim consigam finalmente ver como não podemos dar-nos ao luxo de desperdiçar décadas de conhecimento científico produzido pelos geocientistas e que certamente nos pode ajudar a vencer uma série de desafios, de que este, a recuperação da natureza, é um exemplo bem significativo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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