A primeira surpresa

O amor acaba quando o silêncio vem para jantar e não foi convidado.

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"O amor acaba quando o silêncio vem para jantar e não foi convidado" Maria Inês

O fim do amor descobre-se mais no silêncio, em tudo aquilo que já não se diz. A migalha que fica no lábio e roda, que vai de uma ponta à outra e que está ali mesmo depois de um gole e mais outro. O guardanapo que quase lá chega, e vai ser agora, mas não, não sai, e o outro ali à nossa frente vê e nada diz. Não vale a pena. Já não interessa que fique ali um resto de refeição que foi muda, que foi mais uma, que cimentou a rotina, que nos lembrou de que podíamos estar a viver outra vida mas ficámos ali por inércia, por medo, porque as pessoas têm medo de ser sozinhas e incompletas quando, na verdade, já foram inteiras e ruidosas, saudando cada momento em que se sentaram à mesa, até quando estavam sozinhas.

O silêncio diz tudo. Ouve-se o mastigar lento do outro, às vezes contam-se as garfadas para nos distrairmos da falta de palavras.

O amor acaba quando o silêncio vem para jantar e não foi convidado.

Eram casados há mais de 50 anos. A vida toda. Ela só descobriu muito tarde como fora ingénua. Dedicou os seus gestos, pequeninos e grandes, aos filhos e ao marido – até quando errou nos gestos –, foi bruta por incapacidade de ser meiga. Agora está tudo nos livros, não é? Ensinam-nos a ser pais como se fosse molde que servisse a todos…

Ser meigo é coisa que já não se diz. Fomos de um extremo ao outro: da inaptidão de demonstrar amor até este “amo-te” banalizado em pacotes de açúcar com que tentamos adoçar a vida. “Amo-te” pode estar nas mensagens automáticas do telemóvel porque é coisa para sair a toda a hora, até quando não se sente. Vivemos do instantâneo. Nem sempre é mau.

Eles viviam na rotina que há muito tinha ficado por ali. Uma reforma que chegou, apesar de tudo, quando ele continuava bem e forte, e ela, ela habituada aos seus gestos que não eram vigiados durante o dia e apenas o aguardava com o jantar pronto às sete tentando sempre agradar-lhe. Nunca ele foi capaz de levantar a mesa, arrumar um prato que fosse. Nunca jantaram fora. Ele veio para casa triste. E ela mais triste ficou por já não poder ter o seu dia limpo, entre pensamentos que não chegavam a ser voz e os telefonemas com as irmãs com quem se ria entre uma ida ao jardim ou ao quintal quando as galinhas davam sinal de mais um ovo.

Ele vinha todos os dias da cidade. Ela quase não saía de casa. Raras idas ao médico, à costureira, à pequena mercearia onde sempre se abasteceu. Incansável com os filhos, que seguiram com a vida – porque os filhos são nossos no sentimento, mas um dia vão descobrir a rotina deles.

Os dois ficaram sozinhos, mais velhos e doentes, mas isso nunca fez com que ele estendesse o braço para lhe dizer: “Eu faço.” Isso não aconteceu. Ele continuou a ser o mesmo homem de sempre, agora acompanhado dos fantasmas da idade; e ela, da vulnerabilidade da solidão. Entre os gestos pequeninos e largos (da bondade que sempre a acompanhou), ela foi fazendo tudo. Um dia, estava ela muito doente, ele chamou-a para lhe dizer que a cama não estava bem-feita. Meiguice foi palavra que nunca se aprendeu, nem a meiguice vem em pacotes de açúcar. Compreensão também é uma palavra que nem sempre assimilamos. Os mais velhos dizem que há alimentos que ficam a trabalhar no estômago, e para esses mesmos, há palavras que ficam a trabalhar no coração – nunca se transformam em sentimentos.

São casados há mais de 50 anos. Ele nunca soube fazer nada dentro de casa porque esse é o lugar da mulher. Da mulher dele. Da casa dele. Vieram os dois de lugares inóspitos, esvaziados de sentimentos. Ela sempre foi um doce sem precisar de ler o que diziam os pacotinhos de açúcar. Ele foi implacável a maior parte das vezes. Fez-se a pulso e chegou aonde queria, mas não, nunca, ao lugar do amor – uma linguagem por aprender.

Há dias, ela saiu da mesa enquanto ele ficou no seu mastigar lento e uma migalha residia ali mesmo no lábio. Ficou ele e a rotina. Ela saiu para estender os pensamentos. Quando voltou, ele já não estava na mesa, mas tinha-lhe deixado duas tangerinas descascadas.

A primeira surpresa em 57 anos.

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