Amber Heard: todas somos loucas. #EuTambém

Este não é, por isso, um texto sobre Amber Heard. Este é um texto sobre nós, as loucas. Sobre nós, mulheres: porque ser mulher no patriarcado é estar sempre na iminência da loucura – seja pela hiper-conformidade à feminilidade, seja pela sua transgressão. A sanidade é branca, masculina e heterossexual.

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EPA/MICHAEL REYNOLDS / POOL

Este não é um texto sobre Amber Heard. Felizmente, muito do que penso e planeei escrever já foi escrito: sobre o estrondoso backlash ao #MeToo e sobre a “bigbrotherização” da caça às bruxas, combinando misoginia medieval com cultura de espectáculo e culto de celebridades. Diferentes textos dissecaram a inatingível exigência das vítimas perfeitas (aquelas que não respondem nem reagem à violência – e, sobretudo, não existem). Vários artigos alertaram para a perigosidade dos discursos em torno da “violência mútua” nas relações de intimidade, contribuindo para obnubilar dinâmicas de poder.

Este não é, por isso, um texto sobre Amber Heard. Este é um texto sobre nós, as loucas. Sobre nós, mulheres: porque ser mulher no patriarcado é estar sempre na iminência da loucura – seja pela hiper-conformidade à feminilidade, seja pela sua transgressão. A sanidade é branca, masculina e heterossexual (lembremos que a homossexualidade foi despatologizada há pouco mais de 30 anos: a psiquiatria é também política).

Amber Heard é só mais uma numa longa linhagem de loucas. Mais uma “ex louca”, essa (frequente) fantasia sexualizada: dizia Trump que “as mulheres profundamente perturbadas são sempre as melhores na cama”. (Quase nunca ouvimos falar de ex-namorados loucos: por que será a loucura apanágio das mulheres, sobretudo das ex-amantes?).

A loucura feminina tem um longo lastro histórico: das histéricas, às bruxas, às personalidades borderline. Atravessa os universos do pecado e da superstição, da patologia e da psiquiatria (universos tão mais comunicantes do que gostaríamos de acreditar). Neste contexto, vale a pena ler The Madness of Women: Myth and Experience, de Jane Ussher: um livro tão delicioso como doloroso, que disseca a construção da loucura feminina através dos séculos e percorre as linhas – tantas vezes finas – entre tratamento e tortura das mulheres consideradas loucas. Ao longo do tempo, mulheres sujeitas a múltiplas violências e formas de exclusão foram declaradas loucas e institucionalizadas. Tantas formas de loucura: a pobreza, a marginalidade, o amor e o desejo tidos como desviantes.

A história dos asilos esconde muitas histórias de abuso, de patologização da pobreza e da marginalidade. A obra da jornalista Nellie Bly é um mergulho nestes abismos. Mas nem a riqueza ou a fama protegem as mulheres, como nos lembra o caso célebre e recente de Britney Spears, que mesmo no Olimpo da música pop viveu sob tutela legal do pai durante 13 anos. Ou, recuando, o caso de Maria Adelaide Coelho da Cunha, mulher da elite lisboeta e dona de uma fortuna considerável, declarada incapaz depois de se apaixonar pelo motorista e abandonar o casamento em 1918. No diagnóstico constaram figuras de proa da psiquiatria em Portugal, como Egas Moniz e Júlio de Matos. (Repetimos: a psiquiatria é também política).

A loucura das mulheres é um dos pilares da cultura da violação: brutalizam os nossos corpos, desacreditam a nossa palavra e testemunho; por fim, patologizam o nosso trauma e a nossa dor. No princípio e no fim, o medo e o controlo da sexualidade das mulheres.

Todas somos loucas – ou todas podemos sê-lo. A caricatura da mulher louca está sempre à espreita, à distância de um qualquer acidente biográfico: basta, tantas vezes, que denunciemos agressores insuspeitos e improváveis, e que sejamos vítimas (necessariamente) imperfeitas. Continuamos a acreditar que homens agressores não podem ser também ternos, profissionais dedicados, amigos fiéis, filhos extremosos, vizinhos cordiais. Continuamos a acreditar que agressores são “feios, porcos e maus” – e que as “verdadeiras vítimas” são imaculadas, virtuosas, virginais. (“Ela também não é santa”, ouve-se amiúde; como se violência e vitimação fossem expressão de santidade, e não de poder).

Todas podemos ser loucas, se denunciarmos violência masculina. Vimo-lo aqui, no brevíssimo #MeToo em Portugal. Amber Heard é só mais uma louca – e este texto não é sobre ela. É sobre nós.

Sabíamos que vinha aí o backlash: sonoro, impiedoso, esmagador. A enlouquecer, uma a uma, as mulheres que viveram e denunciaram violência. No patriarcado, a loucura das mulheres é inescapável. Todas somos loucas.

#EuTambém.

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