Guerra na Ucrânia: fertilizantes mais caros abrem caminho para adubos orgânicos

Preços dos adubos de síntese subiram desde o início da guerra na Ucrância. O aumento do custo deste produto está a acelerar a adopção das versões orgânicas e pode fomentar práticas de cultivo mais ecológicas

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Reuters/VALENTYN OGIRENKO

Os preços dos fertilizantes industriais dispararam desde o início do conflito na Ucrânia. Os valores do produto, cujo processo de produção requer enormes quantidades de energia, já estavam altos desde o final do ano passado. A guerra agravou uma situação que já não era auspiciosa, trazendo instabilidade para o sector agro-pecuário e alimentar. Com os adubos de síntese mais caros e disputados, as versões orgânicas têm agora oportunidade para ganhar terreno e fomentar práticas de cultivo mais ecológicas – caminho que já estava a ser, de resto, encorajado pela Política Agrícola Comum (PAC).

“Esta crise pode acelerar um processo já iniciado pela estratégia europeia Do Prado ao Prado”, acredita Guilhermina Marques, professora na Escola de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade de Trás os Montes e Alto Douro (UTAD). A docente faz o elogio dos biofertilizantes e lamenta “alguma resistência” em reduzir a utilização de adubos industriais – um produto que ajuda a garantir alimentação para uma parte significativa da população humana, mas que, em contrapartida, tem um grande impacte ambiental.

Entre os caminhos apontados pela estratégia europeia está a redução de fertilizantes industriais em 20 por cento e a diminuição da perda de nutrientes nos sistemas agrícolas em 50 por cento até 2030. “Um dos objectivos da nova PAC é atribuir maior importância aos adubos orgânicos. E o que se vê na Europa é que todas as unidades de compostagem estão com um boom de crescimento. Isto não foi o resultado da guerra, já se regista este crescimento há dois anos, tanto na produção como no consumo”, explica Henrique Trindade, docente na UTAD.

O conflito na Ucrânia surge, portanto, como um factor que vem acelerar a transição encorajada por Bruxelas. “Aquilo que é muito mau para uns pode ser uma oportunidade para outros, esta situação com os minerais está a abrir uma nova porta para os adubos orgânicos. Convenço-me de que vamos passar a recuperar muito mais aquilo que antes víamos como lixo, resíduos da floresta e da agro-indústria, dejectos e estrume dos animais”, acrescenta Henrique Trindade, que também actua como vice-director do curso de doutoramento em Tecnologias Emergentes Aplicadas aos Sistemas Agro-florestais. O especialista prevê que os dois tipos de fertilizantes – o sintético e o orgânico – continuem a ser utilizados mas numa lógica de “complementaridade”.

Há quem alerte para o risco de uma vaga de fome, e que argumente que temos de encontrar fontes alternativas de fertilizantes químicos. Mas não, temos de continuar neste caminho de sustentabilidade. Esta política da União Europeia preocupa-se com a nossa soberania [alimentar]. Os sistemas ecológicos de produção agrícola também promovem uma alimentação mais saudável. Esta situação [da guerra] pode ser uma oportunidade para acelerar a transição se conseguirmos nos opor a estas forças [que lutam pela continuidade das versões industriais]”, afirma Guilhermina Marques.

A associação Zero tem vindo a alertar para “a situação de dependência crónica da agricultura nacional no uso de fertilizantes de síntese”. O ambientalista Pedro Horta, responsável pelo grupo de trabalho de agriculturas e florestas da Zero, reitera que “as oscilações de preço destes factores de produção não são algo novo”. Como o fabrico destes produtos exige um alto consumo de gás natural, os valores dos mesmos acabam por estar expostos à volatilidade do mercado energético. A guerra na Ucrânia veio acrescentar uma nova camada de complexidade: “a importação de fertilizantes sintéticos da Rússia, Bielorrússia e Ucrânia têm bastante expressividade nos países da União Europeia”, nota. O conflito e as sanções económicas acabaram por condicionar a compra destes produtos.

Azoto, fósforo e potássio

Os adubos sintéticos podem ter várias formulações, mas, frequentemente, recorrem a um ou mais nutrientes essenciais às plantas: azoto, fósforo e potássio. O adubo fosfatado, por exemplo, tem o fósforo como “macronutriente principal”, podendo estar disponível “sob diversas combinações químicas de diferentes graus de solubilidade”, define o despacho que aprova o código de boas práticas agrícolas.

“Estes fertilizantes são sobretudo produzidos a partir da extracção de depósitos que têm especial ocorrência no Leste Europeu”, explica Pedro Horta, para contextualizar como a geopolítica dos minerais acaba por ter impacto nos sistemas agrícolas e, por fim, no preço dos alimentos que chegam às prateleiras. A Rússia e a Bielorrússia (país aliado de Putin e, portanto, também alvo de sanções económicas) foram responsáveis, em conjunto, por mais de 40 por cento das exportações de potássio em 2021, segundo a agência Reuters. Não causa espanto, portanto, a repercussão das medidas punitivas nos preços quer dos produtos quer das suas matérias-primas.

Em Março, o preço dos fertilizantes comerciais disparam, atingindo um máximo histórico. O valor dos fertilizantes azotados quadruplicou desde 2020, já o do fósforo e do potássio triplicaram, segundo a consultora londrina CRU Group. Estes aumentos em cadeia podem ter repercussões não só no valor comercial e nutricional dos alimentos – menos nutrientes no solo baixam a qualidade da colheita –, mas também na sua própria disponibilidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, os stocks de trigo para consumo interno são os mais baixos dos últimos 14 anos, refere a Reuters.

Mais de 20 por cento das importações nacionais de adubos potássicos têm origem na Rússia e três por cento na Bielorrússia, segundo dados de 2021 do Instituto Nacional de Estatística. “Para os fertilizantes azotados, esta dependência directa é menor (5,6 por cento da Rússia e quatro por cento da Ucrânia), mas mantém-se a necessidade de gás natural para o fabrico destes adubos e, como se sabe, a Rússia é um dos principais países fornecedores da União Europeia”, contextualiza Pedro Horta.

Já o fabrico de adubo azotado implica a obtenção de amoníaco através do processo Haber-Bosch, procedimento que há mais de um século permitiu a produção industrial de fertilizantes. “É preciso muita energia para produzir azoto. Trata-se de um processo conduzido a elevadas temperaturas, entre 400 e 600 graus, bem como elevadas pressões (200 atmosferas). Só assim se consegue a síntese das primeiras moléculas de amónio. Quer os potássicos quer os sulfatados são obtidos a partir de substâncias químicas. No caso do fósforo é preciso minerar rochas ricas em hepatite – e, dessa rocha, é concentrado o fósforo para os fertilizantes. O potássio também é obtido através de jazidas de rochas ricas nesse mineral, que é depois dissolvido e posteriormente concentrado numa fórmula para integrar o adubo potássico. Em todos estes processos, a energia é fundamental”, afirma Henrique Trindade.

Não é apenas pela questão energética que os adubos de síntese são pouco amigos do planeta. Estes produtos geram dependência de matérias-primas que não são renováveis (como o fósforo). Esgota-se um recurso finito no planeta em vez de recorrer a opções orgânicas para dotar os solos de capacidade produtiva. Subprodutos agrícolas como restos de poda, palha, folhas e dejectos de gado podem religar o ciclo de nutrientes à produção animal e vegetal. Este ciclo está muitas vezes desligado nos sistemas agrícolas devido ao modelo industrial, intensivo de produção.

“A diminuição da dependência dos adubos sintéticos começa na própria escolha e aplicação do sistema agrícola. Uma monocultura de alta densidade em grandes extensões, baseada em variedades exigentes (do ponto de vista de nutrição da planta), tenderá à dependência deste tipo de fertilizante”, argumenta Pedro Horta. O ambientalista argumenta que a escolha deverá recair cada vez mais sobre sistemas agrícolas diversificados e com multifuncionais. Por outras palavras, apostar em culturas diferentes que permitam gerir a fertilidade do solo de forma mais estratégica. E também em plantas como as leguminosas, que ajudam a acumular e fixar nutrientes.

Em substituição de fertilizantes de síntese, também podemos usar biofertilizantes baseados em microrganismos que possuem propriedades benéficas para as culturas. É o caso dos fungos micorrízicos e de algumas bactérias isoladas a partir do solo. Entre estas, destacam-se os rizóbios, que fixam o azoto da atmosfera quando em associação com as culturas leguminosas, enquanto outras promovem o crescimento das plantas através de diferentes mecanismos, explica Guilhermina Marques, que se tem debruçado sobre o estudo dos biofertilizantes.

Estes produtos, também conhecidos como bioestimulantes, são formulados com diferentes espécies de bactérias de modo a garantir um conjunto de propriedades benéficas, que são importantes na produtividade das culturas, na protecção contra doenças e na resiliência em contextos desfavoráveis (incluindo as mudanças no clima). “Como são seres vivos, se garantirmos boas condições para a sua sobrevivência, estamos a assegurar o estabelecimento, no solo, de um microbioma protector e estimulante das culturas agrícolas”, conclui a docente da UTAD.

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