O perfume

O luxo de ter um disco fazia-nos adivinhar o cheiro do vinil mesmo antes de o ter.

Foto
"A forma como nos vestimos deve fazer justiça à alegria desmedida de estarmos vivos" Mag Rodrigues

A rapariga tem 20 anos, também gosta dos Smiths. É como se criássemos aqui uma poça de água onde ambas molhamos os pés, contentes.

Quando os Smiths apareceram, eu tinha 11 anos. Gostei deles não muito tempo depois. Foi uma sorte terem-me chegado em cassete quando nem dinheiro havia para discos. O luxo de ter um disco fazia-nos adivinhar o cheiro do vinil mesmo antes de o ter. Um livro, um disco, uma caderneta – coisas raras que o dinheiro escasso escolhia.

Havia, perto de casa, uma espécie de papelaria onde coisas mais ambiciosas do que a aldeia se juntavam: sabonetes embrulhados em papel florido, perfumes guardados em frascos grandes, jogos anunciados na televisão que eu não poderia ter, livros com boas fotografias de animais, caixas de lata bonitas.

Eu ia visitar a Fernanda, uma mulher que parecia viver entre os objectos da papelaria, e ficava por lá, pelo menos, a sonhar com o cheiro das coisas. Sei muito bem a que cheirava a papelaria da Fernanda: cheirava ao sonho e ao impossível, e isso era um íman para mim.

Gostaria de saber o que dizia eu à Fernanda nas minhas investidas à papelaria com meia dúzia de escudos no bolso, sabendo que aquilo não daria para muito mais do que um sabonete, mas permitindo-me mergulhar naquele mundo que dava lugar à fantasia.

Ainda hoje posso voltar várias vezes à mesma montra e adormecer a pensar no que me chamou à atenção, mesmo que o meu dinheiro já me deixe arriscar entrar na loja sem sucumbir à impossibilidade.

Houve muitos desses sabonetes em minha casa. Eu não deixava de ir aonde os meus movimentos estavam, à partida, limitados.

Muitas vezes voltei para casa sem saber se a Fernanda gostava como eu das coisas bonitas que tinha para vender. Era eficaz na oferta, mas não me avivava o sonho. Eu era só a miúda que queria guardar numa caixa tudo o que poderia caber no meu mundo. Era tanto. Não ter dinheiro para levar em diante o sonho era apenas um pormenor.

A Fernanda da papelaria. Via-a regressar a casa no seu passo arrastado, nada nas mãos. Os dias iguais. Tudo ficava ali inerte até à manhã seguinte. Eram estreitas as janelas da papelaria. Quase ninguém se atrevia a sonhar. Chamávamos-lhe papelaria por falta de ambição. Deveria ter sido bazar ou boutique – o que seria suficiente para ninguém lá pôr os pés.

Volto à rapariga que gosta dos Smiths, 40 anos depois, e, inconscientemente, isso situa-a num mundo à parte. Há pessoas que nascem com um faro que as distingue: juntam pedras e fazem um colar, apanham folhas da árvore e fazem um livro.

Há pessoas capazes de fazer do lixo luxo, e pessoas que vivendo para o luxo nunca passarão da banalidade. O estilo não tem marca: só a de cada um.

A rapariga descobriu os Smiths e o lugar que queria ocupar, mesmo que isso significasse estar muitas vezes sozinha.

Revejo-me nessa escolha. Sermos inteiramente do que gostamos, em vez de querermos pertencer a uma mancha indistinta sem cor nem contorno.

Há dias enviaram-me uma fotografia minha, um retrato que condensava a adolescência toda. Há ali um véu imaginário que cobre, sobretudo, uma alegria que ficou por acontecer. Porque acreditar que estamos no caminho que queremos fazer nosso tem um preço, e eu sempre estive consciente dele, como quem sabe quantas moedas tem no bolso levando para casa o sabonete em vez do perfume.

Na fotografia lá estava eu a vestir de preto, cor que hoje evito por saber que a vida merece mais. Uso cores e misturo-as desafiando sempre que posso a sobriedade. A forma como nos vestimos deve fazer justiça à alegria desmedida de estarmos vivos. Por isso a adolescência foi tão sombria.

Tenho 50 anos e a rapariga tem 20. Gostamos dos Smiths. Fazemos colares com as pedras que quisermos. Nunca tive medo da rejeição. Preferi estar sozinha até estar certa do que significa ter um amigo.

Ia à papelaria da Fernanda com 20 escudos no bolso. Trazia de lá na memória muito mais do que o dinheiro podia comprar.

Até hoje reconheço o perfume da diferença.

Sugerir correcção
Comentar