A natureza das coisas

O recente Acórdão do Tribunal da Relação (unânime) relativo ao diferendo entre Belenenses e B-SAD decidiu de acordo com a natureza das coisas.

Este Acórdão tem a clareza de explicar que, pelo mérito desportivo, o Belenenses pode voltar à I Liga.

A decisão também está de acordo com as fundações mais remotas do futebol português. Ao contrário de Inglaterra, o nosso movimento desportivo não nasceu de famílias ou de fábricas que formam equipas, mas da expressão da vontade popular, por vezes transportada de um bairro para um nível planetário.

Este Acórdão deixa todos os intervenientes avisados de que devem agir com respeito, dignidade e uma visão de longo prazo.

Os investidores ficam a saber que devem respeito à história e ao património material e imaterial dos clubes; que têm de actuar num espírito de entendimento permanente e de encontrar formas de executar uma gestão que envolva todos; entender que nada fazem sem representar a identidade dos clubes. Se não quiserem dar-se a este trabalho, podem constituir uma sociedade desportiva de raiz, sem qualquer ligação a um clube.

Já os clubes ficam a saber que não têm de ficar perpetuamente reféns de organizações sinistras.

A clareza deste Acórdão tem outro benefício. Os investidores com instintos predatórios e parasitários ficam com um sinal de trânsito adverso da parte do futebol português e talvez procurem outras paragens. Com a mudança da fauna, pode desaparecer a vergonha dos bons investidores em aparecer no futebol português.

Como tenho defendido, o RSD tem de ser revisto. Deve ter a clareza deste Acórdão, mas prever sanções para o incumprimento. Um investidor inescrupuloso, que expulsa o clube da vida do grémio social, não pode ser premiado com a retenção dos direitos de participação desportiva.

Sobre o nosso caso concreto, o Clube de Futebol “Os Belenenses” está a sair de autêntico filme de terror com os “investidores” que lhe calharam em sorte. Em 2018, perante a total indisponibilidade dos “investidores” em refundar o relacionamento, pagámos um preço bem alto e seguimos uma separação dramática e dolorosa. Com esta separação, ambas as partes perderam muito mais do que ganharam.

O Belenenses foi obrigado a recomeçar na 7.ª divisão e viu-se desrespeitado por todos quantos são cúmplices do puro poder do dinheiro e da visibilidade de uma BSAD a competir em escalões superiores. Também viu o seu nome arrastado para incontáveis processos judiciais alimentados pela ferocidade litigante da BSAD. Só quem nada sabe de desporto acredita na ideia demagógica, que circula por aí, de um clube constituir uma sociedade desportiva e desligar-se da mesma com toda a facilidade. É uma decisão muito dura, apenas tomada em situações limite de sobrevivência institucional e que, ainda assim, não está ao alcance da fibra de todos os clubes.

Ao abdicar d’Os Belenenses, a BSAD viu-se despida de uma identidade com mais de 100 anos, perdeu o respeito da opinião pública, acabando a jogar no Estádio Nacional, ao mesmo tempo que assiste a um país, em uníssono, a chamar-lhe o nome que tem mas que recusa assumir.

Mas, onde se perde também se ganha.

O Belenenses fortaleceu o que tem dentro de si: a honra, a liberdade, a fibra e o arrojo dos seus fundadores e de muitos dos que lhes sucederam há mais de 100 anos. O recomeço do caminho a partir do inferno uniu e galvanizou a massa associativa. O enriquecimento também chegou de fora: recolhemos semanalmente o carinho e o exemplo da esmagadora maioria dos clubes que defrontamos desde 2018, cujo serviço digno ao desporto português merece a nota do meu profundo respeito.

A B-SAD ganhou a possibilidade de seguir o seu caminho de forma independente: livre, sem prestar contas e mantendo a sua licença para jogar onde quiser e puder.

Esta decisão aproveita o edifício do futebol português. Em momentos em que a essência dos valores sociais é disputada, a neutralidade costuma estar do lado do mais forte. Há que reconhecer que a FPF e o seu Presidente perceberam, no devido tempo, o que verdadeiramente estava em causa. Faço votos que, por fim, a Liga de Clubes arrepie caminho e se coloque do lado da legalidade e da natureza das coisas.

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