“Talvez o acolhimento familiar de crianças portuguesas em perigo possa também vir a ganhar fôlego”

A disponibilidade das famílias portuguesas para apoiar crianças deslocadas da Ucrânia pela guerra contrasta com a fraca resposta nos últimos anos para acolher crianças em situação de perigo retiradas aos pais. Este pode ser um momento de viragem, diz Rosário Farmhouse.

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"Garantir às crianças um acolhimento familiar é o mais desejável", diz Rosário Farmhouse Daniel Rocha/PUBLICO

O acolhimento institucional de crianças em perigo retiradas às famílias tem vindo a baixar nos últimos anos, mas mantém níveis elevados. Continua a representar mais de 95% das respostas encontradas para as crianças retiradas aos pais, enquanto a opção de acolher em famílias mantém-se com uma expressão irrisória. Portugal é mesmo apontado como um mau exemplo no sentido em que tem muitas crianças acolhidas em instituições. Qual pode ser a solução?
A solução passa pelas famílias de acolhimento, e estas estão a fazer o seu caminho. Este acontecimento inesperado que ninguém desejava, da guerra, e com ela estar a haver tanta disponibilidade de famílias para acolher crianças deslocadas da Ucrânia pode vir a ser uma porta para que estas famílias tenham disponibilidade para acolher crianças [retiradas às famílias] em Portugal e evitar que vão para as casas de acolhimento [instituições]. Tem vindo a aumentar o acolhimento familiar de crianças em perigo [retiradas às famílias], mas o número ainda é muito residual, queremos que aumente.

Na zona da Grande Lisboa está um pouco mais desenvolvido. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em particular, desenvolveu ferramentas nesse sentido e tem pelo menos uma centena de crianças em acolhimento familiar. Além destas, há mais famílias disponíveis. Mas o número de famílias que se oferecem para acolher [crianças em perigo] não é tão grande como no caso a que estamos a assistir actualmente com a guerra na Ucrânia. Com esta onda de solidariedade, estamos a falar de 2000 famílias inscritas na plataforma PortugalforUkraine.gov.pt, ou muitas mais, porque há ainda as que se ofereceram directamente junto dos municípios. Pode acontecer que o actual movimento que veio chamar a atenção para esta causa concreta ajude a que mais famílias queiram acolher, já sem ser de crianças deslocadas da Ucrânia, mas crianças que residem em Portugal e que estão numa situação de perigo. Pode ser potenciador.

Não há famílias disponíveis e esse é o principal problema?
Garantir às crianças um acolhimento familiar é o mais desejável, mas o número de famílias a oferecerem-se não tem sido grande. Também acontece muitas oferecerem-se de início mas desistirem quando começam a perceber a exigência [subjacente ao acolhimento]. Talvez com este movimento do acolhimento de refugiados, o outro acolhimento familiar [de crianças portuguesas em perigo] possa vir também a ganhar fôlego.

Ainda no plano das prioridades e principais desafios da Comissão Nacional para a Promoção dos Direitos e da Protecção das Crianças e Jovens, qual a preponderância da saúde mental nas sinalizações às comissões locais?
É muito significativa. Na maior parte das crianças que estão em situação de perigo, há um qualquer problema associado à saúde mental dos seus pais ou cuidadores, ou até da própria criança, que chega a uma determinada idade e apresenta problemas de saúde mental. Não são todas, mas muitas situações de perigo estão associadas a problemas de saúde mental dos pais ou cuidadores. Sempre houve uma grande falta de pedopsiquiatras. Há agora um investimento em equipas multidisciplinares de saúde mental a começar a surgir por todo o país. São equipas que estão a tentar exercer um trabalho na prevenção para ajudar as famílias a encontrarem equilíbrios e evitar que fiquem numa situação mais débil ou de perigo.

E sendo a protecção das crianças uma função que representa um enorme desafio, como consegue conciliar esse cargo com o de presidente da Assembleia Municipal de Lisboa que assume desde as últimas eleições autárquicas? Não há o risco de uma das funções ficar para segundo plano?
[Exercer os dois cargos] é de uma exigência pessoal extrema. É um compromisso que assumo, e que levou a que eu tivesse decidido que a minha vida pessoal iria ficar para um segundo plano. Tenho essa enorme preocupação de corresponder a estes dois desafios, e quando aceitei o desafio apurei primeiro se era compatível, não queria de todo prejudicar a Comissão Nacional [de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens]. Acho que se pode fazer as duas coisas, abdicando do tempo pessoal e é aquilo que estou a fazer.

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