Guerra e trauma: da resiliência ao crescimento pós-traumático

A guerra é um acontecimento que entra na definição de “potencialmente traumático”. Potencialmente porque o acontecimento, por si só, não determina a resposta das pessoas. Temos de equacionar sempre a interacção entre o acontecimento traumático e os nossos recursos; os factores de risco e de protecção.

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Miguel Manso

Arrancadas de casa, à força bruta das balas, acordados pelas sirenes insistentes que anunciam mais bombas que, cegas, destroem hospitais, mesquitas, habitações e matam inocentes. Com fome, sede, frio, vendo os seus familiares feridos, mortos pelo chão ou enterrados em valas comuns: a Ucrânia vive momentos dramáticos que acompanhamos ao minuto. Que consequências pode isto trazer, para eles e para nós?

A guerra é um acontecimento que entra na definição de “potencialmente traumático”. Potencialmente porque o acontecimento, por si só, não determina a resposta das pessoas. Temos de equacionar sempre a interacção entre o acontecimento traumático (AT) e os nossos recursos; os factores de risco e de protecção.

Quando um evento, pelo seu poder, ultrapassa a nossa capacidade de protegermos o nosso bem-estar ou integridade física e psíquica, então falamos de um AT. Estes acontecimentos têm de ter certas características: ser uma ameaça à nossa vida ou segurança; ultrapassar em intensidade as experiências comuns; ser repentino e com forte impacto. Pode ter efeitos cumulativos, inerentes à exposição repetida a situações traumáticas, por exposição directa ou indirecta (testemunho ou através de detalhes aversivos, como imagens explícitas). Na situação actual, se a guerra se mantiver por muito tempo, mesmo as pessoas afectadas moderadamente podem vir a sofrer de trauma devido à exposição prolongada.

O factor fundamental do AT é que nos expõe à vulnerabilidade e fragilidade inerentes à condição humana. Abala as nossas convicções mais profundas, faz-nos sentir mais vulneráveis e com menos confiança nas nossas competências, a perder o sentido de previsibilidade e de controlo do ambiente. Pode destruir a compreensão que temos do mundo e alterar crenças básicas, como: “o mundo é um lugar justo”, “eu posso controlar os eventos” ou “a vida tem sentido”.

Portanto, a partir do AT, podemos esperar quatro caminhos possíveis. A resiliência que, felizmente, é o caminho mais comum: é um processo dinâmico em que os indivíduos revelam uma adaptação positiva apesar de experiências de adversidade significativa ou trauma. A recuperação, onde a adaptação do indivíduo diminui de forma drástica inicialmente como resultado da adversidade, voltando posteriormente aos níveis de funcionamento anteriores. O stress pós-traumático (que ronda os 8%) e que se caracteriza por re-experienciar a situação de forma persistente como se estivesse a acontecer tudo outra vez. Memórias recorrentes, involuntárias e intrusivas, pesadelos e flashbacks. E crescimento pós-traumático (CPT), que é a mudança positiva que ocorre como resultado das crises e ultrapassa o nível anterior de adaptação, bem como o funcionamento psicológico prévio; não é simplesmente o regresso ao ponto inicial, é uma experiência de melhoria do funcionamento psicológico.

Então, como podemos minimizar o impacto do AT e promover o CPT? Contrariando os factores de risco mais importantes: o evitamento experiencial (fugir de emoções, sensações corporais, imagens, memórias e até dos outros), a culpa e a vergonha. Atenção que não estou a insinuar que devemos ver mais imagens perturbadoras, pelo contrário; este conselho é útil para quem tenha sido, involuntariamente, exposto.

Assim, e ao contrário do que muitos acreditam, numa cultura do “pensamento positivo” é muito benéfico: aprender a observar estas experiências dolorosas com atenção plena (mindfulness), numa atitude de curiosidade, abertura e aceitação, embora nos pareça contra-intuitivo; procurar apoio num ambiente seguro, entre familiares, amigos, comunidade e falar sobre o assunto, sobre as emoções e sensações desagradáveis; desenvolver compaixão, que é o antídoto natural da vergonha e da culpa.

Portanto, todos nós podemos ter um papel importante na prevenção do trauma e enquanto promotores da saúde mental, nomeadamente, mostrando-nos disponíveis para acolher as experiências negativas (nossas e dos outros).

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