Pandemia atirou Valéria para a rua. Agora voltou a ter tecto e salário

A pandemia tirou o trabalho e a casa a Valéria, que demorou 16 meses a ter de novo um tecto pago com o seu salário. Já a Pedro, tirou-lhe as forças, isolado na barraca onde vive há 10 anos.

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A voluntária da Associação Vida Autónoma, Valéria Celestino, 56 anos: “Para sair do poço, às vezes, é uma mão que falta para te tirar” TIAGO PETINGA

A trabalhar “a recibos verdes” na restauração, em Março de 2020 Valéria Celestino, 56 anos, viu-se sem rendimento e com um pedido da senhoria para abandonar o quarto em que vivia em Lisboa.

Acabou a dormir no pavilhão desportivo do Casal Vistoso, onde foram acolhidas pessoas em situação de sem-abrigo no início da pandemia, e depois, noutra resposta de emergência também assegurada pela Câmara Municipal de Lisboa, partilhou um quarto na Pousada da Juventude do Parque das Nações com outra mulher. Mais tarde, foi para uma residência da Associação Vida Autónoma (AVA), em Alcântara.

“Fui para o Casal Vistoso no dia em que abriu e não cheguei a dormir nem um dia na rua”, diz à Lusa, tentando contar nos dedos das mãos quantos meses passou em cada um destes locais: “Faz tanto tempo e estas coisas a gente faz é questão de esquecer.”

Foi quando estava na “residência solidária” da AVA que esta associação a contratou para trabalhar como “educadora de pares”, como são designadas pessoas que passaram pela situação a que os técnicos tentam responder, neste caso, a situação de sem-abrigo.

Valéria reuniu o dinheiro para uma caução e arrendou um quarto em Arroios, voltando a ter uma vida autónoma. Tinham passado 16 meses desde que perdera o trabalho e a casa.

Para Valéria, “a chave é a solidariedade”. “Para sair do poço, às vezes, é uma mão que falta para te tirar”, afirma esta mulher que vive em Portugal desde 2018 e tem no currículo 20 anos de voluntariado no Brasil, em organizações não-governamentais, em paróquias e favelas.

“Com aquilo que eu vi e passei no Casal Vistoso, aprendi muito mais do que em 20 anos de voluntariado no Brasil. Viver na pele ensinou-me muito a olhar. Sou uma pessoa que teve a oportunidade de viver os dois lados da moeda. Até então, eu só entendia um, que era ser voluntária, ver, ficar sensibilizada, mas não o ter sofrido na pele. O que foi e o que é essencial é a solidariedade. E isso eu pude tanto usar, como ver, como participar”, acrescenta.

No Casal Vistoso, colaborou com os técnicos que apoiavam os utentes e assumiu “a presidência da ala das mulheres”. Foi seleccionada para ir depois para a Pousada da Juventude por reunir as condições de regresso à vida profissional e pessoal. E pelos mesmos motivos foi identificada pela AVA e alojada na “residência solidária” da associação, até receber a proposta de trabalho da própria AVA.

“A proposta que eu tive, junto com o que eu sempre gostei de fazer, acho que deu certo. Há males que vêm por bem. Foi um grande mal que veio por bem”, sintetiza.

O seu maior orgulho hoje é “ter conseguido sair” da situação para onde a atirou a covid-19 “sem ter de tomar uma única vez um remédio para dormir”.

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Sede da AVA TIAGO PETINGA

O que contrasta com “o molho de medicamentos” de Pedro Carvalho, 66 anos, que engrossou nestes anos de pandemia, em que se sentiu mais isolado do que nunca na barraca em que vive há 10 anos, no Lumiar, Lisboa.

Pedro, um “caso crónico"

“Não via ninguém, começava a pensar, entrava em stress, comecei-me a passar com isto tudo. Fui ao psiquiatra, fui a tudo. Dez anos é muito tempo, não tenho forças para mais nada”, conta à Lusa.

Pedro é considerado um “caso crónico” de pessoa em situação de sem-abrigo — pessoas que “já passaram por outras respostas e não correu bem e apresentam algumas resistências à intervenção no sentido de um alojamento”, nas palavras de Ana Sofia Nunes, a psicóloga que coordena da equipa de rua da AVA.

“Tenho enfisema pulmonar, preciso de descansar”, afirma, para explicar por que motivo não consegue viver num albergue, onde “metem as pessoas na rua às nove horas e só podem entrar às seis”.

O dia-a-dia de Pedro faz-se hoje de idas logo de manhã ao supermercado com casa de banho “e água quente” que tem nas imediações, à paróquia, onde por vezes almoça, à junta ou ao hospital de Santa Maria, onde os médicos o deixam dormir em dias de especial frio, quando a barraca onde dorme “se torna um frigorífico”.

“Estou sempre ao pé de uma zona com pessoas. Se me acontece alguma coisa, uma má disposição, telefonam logo para o INEM. Não sou de me dar com muita gente, mas ando, faço a minha vida”, afirma.

Nestes 10 anos, já pediu ajuda “a tudo” para ter uma casa, desde “uma série de assistentes sociais” ao Presidente da República, a quem escreveu “uma carta” e que, na resposta, reencaminhou o caso para a Câmara de Lisboa.

Pedro foi referenciado à AVA pela junta de freguesia e a associação acompanha-o desde Junho de 2021. Foi identificado como tendo o perfil para aceder a uma casa do programa municipal “Housing First”, que aloja pessoas em situação de sem-abrigo, sozinhas, em apartamentos arrendados. Já foi entrevistado e a sua candidatura foi aprovada, decorrendo neste momento a fase de procura da casa: “Uma casa numa zona em que haja movimento. Tenho de ver pessoas.”

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