E o ramal de Cáceres ainda faz sonhar

Crianças a brincar com gatos no leito ferroviário, as representações de Jorge Colaço e a economia ainda a girar em torno da memória do comboio, tudo numa estação ferroviária que teima em resistir, como pode, ao passar dos anos. O transporte de passageiros e mercadorias só não resistiu à austeridade de 2012, mas isso quer dizer alguma coisa da grandeza deste lugar?

Foto
AMC ANTONIO CARRAPATO

Chegamos a Beirã e a sinalética ainda nos indica o caminho para a “estação CP”. Estamos na fronteira ferroviária do ramal de Cáceres e a estação de Marvão-Beirã ainda fica a sete quilómetros da fronteira do rio Sever. Quem chegava aqui de comboio era brindado com a arte azulejar de Jorge Colaço, que ainda está preservada do vandalismo. Entre as portas do edifício da estação está compilada a alma desta terra numa representação de duas figuras vestidas com os trajes típicos que seguram o brasão de armas de Marvão, cujo castelo conseguimos ver no alto de uma montanha ao longe.

Este troço foi construído para unir Lisboa a Madrid e conta o povo que o excessivo número de curvas desta linha foi feito para que a sua sociedade construtora tirasse a maior rentabilidade económica possível da obra, uma vez que o Governo português, empenhado em ligar Portugal ao progresso que acontecia na Europa, pagava ao quilómetro a estas construtoras. Apesar disso tudo, durante 142 anos, este foi o caminho mais rápido entre a capital portuguesa e o mundo europeu.

Ainda é possível conhecer um pouco desta obra da engenharia portuguesa do século XIX através da concessão que a Infra-estruturas de Portugal fez a privados e que nos permite pedalar sobre os carris. Circular por este troço deixa-nos entender a natureza envolvente, sentindo cada cheiro e ansiando descobrir aquilo que se esconde no fim de cada curva, imaginando, pelo meio deste exercício, o trajecto tumultuoso que os comboios de passageiros e mercadorias faziam. Fomos até à Ponte de Vide, cuja estrutura metálica é o resultado dos trabalhos das oficinas de Ovar, em 1930. Ao lado, jazem os restos da ponte primitiva. Estas bicicletas sobre carris serão hoje, certamente, pequenas cócegas para esta estrutura metálica que fica entre curvas apertadas e inclinações de traçado que as nossas pernas acusavam a cada pedalada.

Pelo caminho, somos alertados pela guia que a falta de chuva está a fazer desabrochar fora de tempo as flores das giestas que teimam em invadir o espaço entre carris. Pedalar pelo meio de uma parede de pétalas brancas e amarelas e, no seu meio, vislumbrar a paisagem rural alentejana, faz-nos pensar no impacto que esta obra trouxe para a região: o apogeu ferroviário alentejano está consumado na gare da Marvão-Beirã e nos seus edifícios de apoio que as gentes teimam em conservar. Ali, o comboio mudou tudo e, mesmo após fim das viagens, continua a trazer pessoas a esta aldeia, por motivos diferentes, mas causando sensações iguais.

Longe desses tempos, o complexo ferroviário desta aldeia raiana mostrou-nos crianças a brincar no meio do balastro que ainda sobrevive, enquanto víamos um gato que se aproximava, ponderando cada passo que dava. Visão curiosa, esta. O animal saltou aqueles carris, que estão a ser engolidos pelo tempo, e deixou que as crianças lhe tocassem. Ao longe, os pais viam os filhos a brincar e sorriam: a possibilidade de passar ali uma locomotiva ou uma dresina é inexistente. Quem diria que isto seria o que iríamos reter de uma estação de comboios...

Crianças a brincar com gatos no leito ferroviário, as representações de Jorge Colaço e a economia ainda a girar em torno da memória do comboio, tudo numa estação ferroviária que teima em resistir, como pode, ao passar dos anos. O transporte de passageiros e mercadorias só não resistiu à austeridade de 2012, mas isso quer dizer alguma coisa da grandeza deste lugar?

Sugerir correcção
Comentar