Aos meus amigos brasileiros

Em Setembro de 2015, publiquei aqui no PÚBLICO, uma carta aos meus amigos brasileiros, inquieto que estava com o futuro da sua democracia, ameaçada pelo regresso do ódio político e por uma polarização maligna que levaria ao poder Bolsonaro.

Hoje sinto de novo a necessidade de vos escrever, num momento em que as cidades ucranianas estão cercadas, milhares de civis morrem nos bombardeamentos e mais de dois milhões são já refugiados. A guerra voltou à Europa e ninguém é capaz de dizer como irá acabar. Sinto-me, tal como muitos europeus, cheio de razões para apelar à vossa solidariedade para com uma Europa que vos acolheu nos anos de ditadura militar e sempre condenou Bolsonaro, onde seria sempre recebido com manifestações de protesto e ovos podres. O apoio brotava da convicção profunda de que o direito à liberdade e à democracia são universais, de que os direitos humanos e a obrigação de os defender são as maiores conquistas dos pós II Guerra Mundial.

No lugar da empatia humana com o sofrimento atroz das populações, vemos a cegueira ideológica de muitos para quem o mundo se reduz a um confronto estratégico, entre os Estados Unidos e a Rússia, indiferentes à luta heróica dos ucranianos pela liberdade contra a tirania ou aos russos que vão para a rua defender a paz.

Olham para as relações entre os Estados com as lentes das velhas teorias geopolíticas reacionárias dos espaços vitais e zonas de influências, tão populares na escola de guerra de todas as ditaduras. Negam o papel da ideologia, do nacionalismo identitário de Putin, de etno-nacionalismo eslavo e religioso, de um conservadorismo extremo. Não vêem, ou não querem ver, que Putin é um autocrata obscurantista, para quem a sorte do seu povo é irrelevante, que se preocupa com as sanções apenas na medida em que afetem o seu poder. Para terem a exata imagem do que é Putin, basta pensar no que seria o Brasil sem ser um Estado de direito com contrapoderes, sem imprensa livre, e onde quem se manifestasse contra o regime fosse preso, onde os opositores pudessem ser envenenados impunemente. Em suma, se Bolsonaro tivesse o poder absoluto e se dotasse de uma poderosa máquina de guerra e de mentira que construiria com o propósito de afirmar um poder imperial. A ida de Bolsonaro a Moscovo nas vésperas da invasão e a sua manifestação de solidariedade com Putin deveria ter ajudado a compreender isso.

Os que condenam a agressão de Putin - e também há muitos que o fazem -, na sua maioria, acrescentam um “mas”, normalmente para serem identificados como do lado da boa consciência de esquerda, para não serem atacados pelos seus. Dizem: ‘mas’ os Americanos invadiram o Iraque, ‘mas os Palestinos são vítimas de agressão… Agem como se um crime justificasse outro crime. Quando da Guerra no Iraque, milhões foram para a rua em todo o mundo, sem nenhum ‘mas’. Passam o tempo a discutir as decisões tomadas depois da queda do Muro de Berlim, como se, depois da invasão da Polónia, a discussão pertinente fosse o mal-fundado do Tratado de Versalhes.

Para alguns, ser de esquerda é ser antiamericano, pelo que nenhum esforço sério de análise é necessário, basta saber o que lado estão os Estados Unidos. Se fosse assim tão simples, para tomar posição, bastava ler os comunicados da Casa Branca.

durante a guerra da Síria me interroguei sobre quais eram as razões que levavam tantos a apoiarem a intervenção russa em socorro de um criminoso de guerra como Assad. Argumentei que a explicação podia ser encontrada nas teorias, de um outro russo, Ivan Pavlov, dos “reflexos condicionados” e escrevi que “quanto maior o antiamericanismo, maior é o apoio a Putin e a Assad”.

As razões do antiamericanismo na América Latina são bem conhecidas. As intervenções americanas, o apoio a sangrentos golpes militares contra os regimes democráticos, como no Chile, na Argentina e no Brasil, as décadas de bloqueio a Cuba, são crimes que marcam a consciência da esquerda latino-americana. Embora as razões profundas do antiamericanismo estejam bem identificadas, não justificam o niilismo de alguns, não justificam a falta de compromisso com os direitos humanos.

Temos que lembrar, em abono da verdade, que também em Portugal existem alguns para quem ser de esquerda é apenas uma etiqueta, sem conteúdo ideológico, sem qualquer empatia, muito menos solidariedade, perante as vítimas da opressão e que, talvez por isso, só descobriam que Putin é um reacionário que quer reconstruir o império czarista, quando responsabilizou Lenine e os bolcheviques pela existência da Ucrânia. Não o Lenine que dizia que o império dos Czares era “uma prisão dos povos e das nações”, mas na sua versão estalinista de deportação de populações.

É verdade que há muitos brasileiros que se consideram de esquerda e que se opõem à guerra, que assumem uma posição de denúncia de Putin e que, por isso, são bombardeados de comentários insultuosos ou de espanto. A sua coerência faz deles a esperança de um Brasil ode prevaleça a razão e capaz de fazer dos direitos humanos um credo universal; um Brasil que poderá este ano desembaraçar-se de Bolsonaro e voltar a ser uma voz credível e respeitada.

As posições que hoje tomarem sobre a Ucrânia contribuirão para o restauro da ideia de que a esquerda brasileira é uma alternativa real ao bolsonarismo. O mundo precisa de um Brasil que recupere o seu protagonismo enquanto ator da paz, que coloque os cidadãos e os seus direitos no centro da sua ação.

O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico

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