Europa deve actuar no mercado do gás para conter preço da electricidade

Jorge Vasconcelos, antigo regulador da energia, defende mudanças nos mercados grossistas de gás natural, para evitar a volatilidade de preços que se estende à electricidade.

Foto
Jorge Vasconcellos foi presidente da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) entre 1996 e 2006 Daniel Rocha

Os preços do gás natural não têm dado tréguas nos últimos meses e os contratos de futuros indicam que irão persistir este ano em níveis recorde, espelhando as incertezas geradas pelo extremar das tensões entre a Rússia e a Europa devido à guerra na Ucrânia.

Os contratos de gás natural para entregas ao longo dos próximos meses no hub holandês TTF, que serve de referência a nível europeu, superam actualmente os 200 euros por megawatt hora (MWh), e só a partir do primeiro trimestre do próximo ano se antecipa uma descida significativa, com o contrato para entrega em Abril de 2023 nos 77 euros por MWh (mais do triplo dos 20 euros por MWh do início de 2021).

Se é difícil antever o rumo dos acontecimentos no terreno ou se haverá interrupção das importações russas, é garantido que os preços altos do gás vão continuar a contaminar os preços da electricidade (que têm sido inflacionados precisamente pelos custos de venda das centrais de ciclo combinado a gás, que reflectem ainda o valor recorde dos títulos de emissões de carbono, a aproximar-se dos 100 euros por tonelada), e a dificultar a vida a cidadãos e empresas europeias.

O ex-presidente da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) Jorge Vasconcelos diz ao PÚBLICO que a guerra na Ucrânia “veio confirmar, mais uma vez, a necessidade de a Europa pensar na sua independência energética”, e que isso implica reflectir sobre o papel do gás natural como energia de transição e na formação dos respectivos preços.

O mercado grossista de gás natural é “essencialmente baseado em contratos de curto prazo e numa formação de preço tipo spot [mercado à vista], à semelhança do que acontece com o petróleo e electricidade”, e esse é um modelo de organização que gera instabilidade num continente “que não tem reservas de gás natural suficientes para alimentar um mercado interno competitivo”, ao contrário do que sucede nos Estados Unidos, diz Jorge Vasconcelos.

Defendendo que “a limitação da duração dos contratos tem consequências ao nível da volatilidade dos preços do gás natural utilizado para a geração de electricidade”, o actual presidente da New Energy Solutions (empresa de consultoria na área do ambiente e energia) garante que se “alterássemos o funcionamento do mercado de gás natural, então, também o preço do gás natural que é utilizado para a geração de energia eléctrica se alteraria”.

O ex-regulador lembra que a Comissão Europeia sugeriu recentemente aos Estados-membros que possibilitem que os consumidores industriais façam contratos de longo prazo no sector eléctrico e que, por exemplo, no mercado eléctrico ibérico (Mibel) já há produtos disponíveis para contratos a dez anos. Mas o especialista diz que “ainda falta fazer esta revisão dos pressupostos” no sector do gás, alterando uma “legislação e jurisprudência que conduziram a uma perspectiva de curto prazo” nos mercados grossistas europeus.

Tornar a Europa energeticamente independente e cumprir o objectivo de atingir a neutralidade carbónica em 2050 requer reduzir as importações de combustíveis fósseis e instalar cada vez mais renováveis, mas também garantir potência de geração eléctrica firme (como a que proporcionam as centrais de ciclo combinado a gás), à medida que vai aumentando o peso da produção eólica e solar (que é limpa, mas intermitente). E enquanto não se generalizam soluções de armazenamento de grande escala.

Por isso, sabendo que as centrais a gás devem continuar no sistema eléctrico “a acompanhar a mudança energética”, o desafio também é fazer com que sejam “remuneradas de uma forma adequada”, que não seja nem excessivamente elevada com prejuízo para os consumidores, nem excessivamente baixa, desincentivando os investimentos necessários, diz ainda o ex-regulador.

Evitar “novos problemas”

Para lá do “cenário catastrófico” que seria a interrupção repentina dos fluxos oriundos das jazidas russas, e que “obrigaria a accionar os mecanismos de solidariedade previstos e encontrar soluções de curto prazo”, o ex-presidente da ERSE também entende que neste contexto de incerteza e preços muito altos se devem “evitar tentações de dirigismo” que se traduzam em “heranças muito pesadas para o futuro”.

O importante “é deixar aos agentes económicos a possibilidade de alterarem o portefólio de contratos que têm e passarem a poder incorporar contratos de mais longo prazo”, em função do que considerem a estratégia mais adequada, argumenta.

Num momento em que se debate a possibilidade de os Estados-membros realizarem compras conjuntas de gás natural e em que se analisam alternativas ao gás russo, Jorge Vasconcelos alerta que “as soluções que venham a ser adoptadas para dar resposta a um problema de curto prazo” não devem criar “novos problemas que se venham a revelar difíceis e caros”.

E sobre alternativas às importações energéticas russas, o ex-regulador garante que “há sempre alternativas, podem é não ser as mais ambientalmente vantajosas ou mais baratas”.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários