Temendo os efeitos da guerra no seu país, alguns russos preferem sair

Há quem tenha medo de ter de ir combater, há quem pense nas consequências económicas, e há quem não queira viver com mais restrições à liberdade.

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Protesto contra a guerra em São Petersburgo Reuters/STRINGER
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Detenção em protesto contra a guerra em São Peterburgo Reuters/STRINGER
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Entre as detenções mais notadas está a de uma idosa Reuters/STRINGER

Alexei Trubetskoi percebeu uma coisa no dia em que acordou com a notícia de que o exército do seu país tinha começado a atacar a Ucrânia: “Esta invasão horrível vai mudar a Rússia para sempre”, contou ao diário britânico The Guardian. Nesse dia comprou um bilhete de avião para o Sri Lanka, um entre um número crescente de russos que está a sair do país nos últimos dias.

Trubetskoi decidiu sair antes de haver rumores sobre uma potencial imposição da lei marcial, que as autoridades negaram, e de ter havido propostas de vários políticos do país para um endurecimento de castigos em geral e de quem protesta contra a guerra em particular. Dmitri Medvedev, antigo primeiro-ministro (e ex-Presidente), disse que a resposta russa às sanções ocidentais deveria ser voltar a ter a pena de morte para “crimes especialmente graves”, relata o Financial Times. Outros deputados estão a propor uma lei para que todas as pessoas que protestem contra a guerra sejam enviadas “para cumprir serviço militar nas províncias de Donetsk e Lugansk”, as repúblicas ocupadas por separatistas pró-russos desde 2014, cuja independência Vladimir Putin declarou estabelecendo o seu pretexto para invadir, dias depois, a Ucrânia.

Os protestos contra a guerra têm-se repetido, todos os dias, em dezenas de cidades russas, com centenas de detenções diárias. Um forte apelo a manifestações anti-guerra veio entretanto do opositor ao regime Alexei Navalny, que está preso (e que foi alvo, há cerca de três semanas, de mais um processo que é visto como mais uma farsa). “Putin não é a Rússia”, escreveu no Twitter. “E se há alguma coisa na Rússia para se ser orgulhoso, é das 6824 pessoas que foram detidas porque – sem qualquer apelo – saíram à rua para dizer ‘Não à guerra’”, declarou.

“Cerrando os dentes e ultrapassando o medo, temos de pedir o fim da guerra. Cada pessoa detida tem de ser substituída por duas novas”, disse ainda. “Tudo tem um preço, e hoje, na Primavera de 2022, temos de pagar o preço. Ninguém o pode fazer por nós.”

A Organização OVD-Info dá conta de mais de 8000 pessoas detidas. Nos últimos dias foi filmada a detenção de uma idosa, Ielena Osipova, que terá sobrevivido ao cerco a Leninegrado durante a II Guerra Mundial, e ainda de duas mulheres e cinco crianças com idades entre os cinco e 11 anos, que queriam pôr flores junto da embaixada na Ucrânia e tinham um cartaz dizendo “Não à guerra”.

O já pequeno reduto de informação com alguma liberdade foi ainda mais reduzido com o encerramento de uma das mais antigas rádios russas, a Eco de Moscovo, e da estação de televisão Dozhd, a única independente do país. A rádio e a televisão foram ainda ameaçadas com uma multa de até 5 milhões de rublos (mais de 43 mil euros) por terem usado expressões proibidas como “guerra” para se referir à invasão russa da Ucrânia. O número de telefone do director da estação, Tikhon Dziadko foi publicado online, levando a uma avalanche de telefonemas ameaçando-o, e à sua família. Dziadko saiu da Rússia na quarta-feira.

O Parlamento russo aprovou uma lei que criminaliza a disseminação de “notícias falsas”, o que levou ainda à saída de jornalistas estrangeiros que, como explicou o director da BBC, deixam de ter condições para fazer o seu trabalho. A BBC notou esta semana que o seu site em russo mais do que triplicou os números médios de audiência, com mais de dez milhões de visitas na última semana, comparado com a média de 3,1 milhões.

Esta sexta-feira, o Governo russo decidiu também bloquear o acesso ao Facebook e ao Twitter. No caso da rede social de Mark Zuckerberg, o Roskomnadzor, regulador dos meios de comunicação social na Rússia, acusou a plataforma de discriminação contra os media russos.

A agência noticiosa russa RIA diz que outros media, como a Deutsche Welle, Meduza, e a Rádio Liberdade, têm tido entretanto acesso limitado.

O jornalista Alec Luhn, que estava há dez anos em Moscovo, saiu da Rússia esta semana. “Os bilhetes estavam quase todos esgotados, o avião cheio”, relata. “Outros passageiros disseram ter medo de ficar encurralados na Rússia, presos ou obrigados a lutar numa guerra que não apoiam”, relatou no Twitter. “Não sabem se vão poder voltar.”

Outra jornalista, Julia Ioffe, que vive nos Estados Unidos, contava que um amigo, que não tinha já conseguido comprar bilhetes de avião, estava a ir de carro em direcção aos países Bálticos para deixar a Rússia, temendo que a dada altura não o pudesse fazer.

Não só o preço dos bilhetes de avião aumentou muito desde que a Rússia encerrou o seu espaço aéreo a linhas da União Europeia e outros países em resposta à sanção aos aviões russos, como outras sanções causam problemas à aviação em geral (substituição de peças, manutenção de aviões, etc). E a S7, a segunda maior companhia aérea russa, anunciou que vai suspender todos os voos internacionais a partir deste sábado (depois de uma aeronave ficar retida na Arménia pela empresa que faz o empréstimo dos aviões à companhia aérea).

O correspondente do Guardian Andrew Roth diz que alguns russos que estão a sair relatam interrogatórios de agentes dos serviços de segurança interna, que pedem para ver os seus telefones, redes sociais como o Telegram (que tem sido muito usado por grupos para discutir saídas do país), para os questionar se estão numa viagem curta ou a considerar sair mesmo do país.

Noutro artigo do jornal britânico, Andrei Kolesnikov, investigador do Carnegie Endowment, disse esperar que o país visse um êxodo da sua “força de trabalho de qualidade” que terá a sensação de “não ter futuro na Rússia”, que continua a ser alvo de sanções e abandonada por grandes empresas internacionais umas após outras.

A vida dos russos vai sofrer com as sanções, mas Alexandre Gabuev, também do Carnegie, disse ao Politico que o regime vai compensar o efeito que isso tem. “Há muito menos dinheiro no banco, mas é possível compensar isso com mais opressão. Toda a gente fica mais pobre e menos sofisticada em termos de tecnologia”, declarou. A Rússia, previu, “vai tornar-se uma Coreia do Norte gigante, com mais força, mas o regime ainda conseguirá funcionar”.

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