Guerra na Ucrânia mostra como será atribulado o caminho para a transição energética

A urgência da transição energética terá pela frente crises inesperadas que tornarão o processo menos linear e o rumo das políticas mais inconstante.

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Dependência do gás natural russo coloca novos desafios à transição energética na Europa. EPA/SERGEI ILNITSKY

Na balança entre custos económicos imediatos e custos ambientais severos no futuro, o mundo parece cada vez mais convencido da urgência de transição energética que consiga travar o processo de alterações climáticas actual. Mas, crises como a da guerra na Ucrânia – com repentinas variações de preços e mudanças drásticas na forma como os países avaliam as suas dependências – prometem tornar mais inconstante o rumo das políticas a seguir, com avanços, recuos e adaptações à medida das novas realidades encontradas no curto prazo.

A prazo, o caminho seguido, como confirmam os economistas do Ambiente contactados pelo PÚBLICO, parece só poder ser um. Para cumprir as metas de descarbonização que permitam travar o ritmo de aquecimento do planeta, é preciso substituir fontes de energia baseadas em fósseis por fontes de energia renováveis. Uma tarefa difícil, tendo em conta que, actualmente, no mundo, a energia proveniente de fósseis representa ainda 85% do total, as energias nuclear e hídrica se ficam pelos 11% e as energias provenientes do vento e do sol atingem apenas os 4%.

Uma mudança das actuais fontes de energia dominantes para outras é um processo que, não só exige bastante investimento, como acarreta perdas para alguns sectores, que têm de ser geridas no curto e médio prazo.

De acordo com um relatório publicado em Janeiro deste ano pela consultora Mckinsey, para concretizar, até 2050, uma transição que coloque as emissões globais líquidas de carbono a zero, será necessário realizar um investimento total em activos de 275 biliões de dólares. Isto é, em vez do investimento anual de 5,7 biliões actual, a média anual terá de ser de 9,2 biliões, sendo que uma parte substancial do investimento tem de ser feita na fase inicial da transição.

E, mesmo assim, alerta o mesmo relatório, existe o risco, “caso seja mal gerida”, de a transição “aumentar os preços da energia, com implicações especialmente para as famílias e regiões de menores rendimentos” e de ter “impactos negativos na evolução geral da economia”, sendo sentida “de forma desigual entre sectores, geografias e comunidades”.

Ao mesmo tempo, contudo, não só a transição “pode trazer oportunidades em muitos sectores e geografias”, como é a forma de evitar custos ainda maiores resultantes dos efeitos de um cenário incontrolado de alterações climáticas no planeta.

“Não tem necessariamente de haver nesta questão um confronto entre economia e ambiente, não tem de haver um trade off. Esse é tipicamente o argumento para não se avançar na melhoria do ambiente, mas há vários trabalhos que mostram que é possível conciliar as duas questões”, afirma Luís Cruz, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

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Um dos maiores nódulos regionais de transformação e redistribuição de gás natural na Europa, em Baumgarten (Áustria) HEINZ-PETER BADER/Reuters

O economista do Ambiente assinala no entanto que o problema que se coloca “tem a ver com o prazo em que a transição tem de ser feita e com a escala da alteração”. “A emergência climática diz-nos que temos de mudar hoje, mas mudar tudo de um momento para o outro não é possível. Quando nos questionamos se é possível abdicar do petróleo e do carvão, percebemos que, por um lado, a tecnologia e o preço de baterias e acumuladores ainda não estão num ponto que nos permita a segurança de abastecimento. Sabemos que a tecnologia está a evoluir a um nível muito elevado, mas ainda estamos muito longe do armazenamento em grande escala que é preciso. E portanto, esta transição para as renováveis é possível, mas tem de contar com o apoio do gás natural”, afirma Luís Cruz.

Catarina Roseta-Palma, diretora da Sustentabilidade no ISCTE, também reconhece que “existe um custo de transformação do sistema”. “As renováveis têm os seus desafios, é preciso melhorar as redes de electricidade, já que não há sempre sol, vento e água, e é preciso fazer uma gestão da procura”, diz, assinalando também que “há custos mais elevados na indústria pesada.

“Por exemplo, para as cimenteiras é muito difícil fazer o que fazem sem energia fóssil”. Mas eles têm de pagar as emissões que realizam. É muito importante todos pagarmos pelos custos que estamos a produzir quando emitimos carbono”, afirma, traçando um paralelo entre o custo da energia e o custo da mão-de-obra. “Não se pode pretender uma economia em que a energia é barata, porque há um custo subjacente a isso, assim como também não é desejável uma economia com uma mão-de-obra barata”, explica.

Portugal, no estudo publicado pela McKinsey, surge inserido no grupo de países que enfrenta um custo de transição relativamente menor, nomeadamente pelo facto de não ser produtor de petróleo e de não ter um peso grande da indústria na economia. Ainda assim, assinala Antonieta Cunha e Sá, coordenadora do Environmental Economics Knowledge Center da Nova SBE, o país tem pela frente um “desafio complicado”.

“Temos uma percentagem relativamente grande de renováveis, mas vamos ter de dobrar a capacidade que temos. E é preciso ter em atenção que a energia solar é altamente intensiva no uso da terra e muito concentrada em algumas regiões. Há impactos na paisagem, na herança cultural, e isso é importante para um país que quer ter o turismo como uma das suas actividades principais. Tudo isto tem de ser contabilizado”, ilustra.

Luís Cruz, por seu lado, está mais confiante que Portugal possa estar “numa posição privilegiada para beneficiar desta transformação. “Por um lado, acredito que as renováveis nos vão assegurar maior segurança nos abastecimentos. É verdade que as secas constituem um problema, mas, como se verifica agora, as questões geopolíticas podem ainda ser mais problemáticas. E estou optimista que o investimento nas renováveis pode estimular a economia local, tendo vindo já a criar emprego e rendimento adicionais em locais do país mais deprimidos”.

Como minimizar os danos?

E para os que saem a perder, principalmente no curto prazo, como garantir que os danos são minimizados? Antonieta Cunha e Sá diz que a melhor opção é “usar as receitas que estão a ser obtidas no mercado de carbono e leilões para poder apoiar aqueles que precisam”. Já em relação à possibilidade de baixar os impostos para aliviar a factura energética, a resposta é negativa: “se queremos realmente desincentivar o uso de energias poluentes...”, avisa.

Também Catarina Roseta-Palma diz que subsidiar preços ou baixar impostos “é a pior política possível”.

“Em Portugal, tentou-se fazer descontos através de um tarifário social e isso é menos danoso. Pode-se tentar minimizar os custos, mas sem interferir nos mercados”, sugere, assinalando que “nas empresas, faz sentido apoiar o investimento em Investigação & Desenvolvimento, que ajude as empresas a serem mais eficientes. No cimento, fala-se de cimento verde, em que se captura o carbono no próprio cimento”.

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Instalação operada pela empresa Gazprom, no campo de Bovanenkovo, Rússia Reuters

Luís Cruz também afirma que a subsidiação e a redução dos impostos “não é certamente uma boa ideia. “Se utilizarmos esses impostos para fazer esta transição, os impostos são bem-vindos, estaremos a usar esses fundos para a correcção de uma externalidade negativa. O que é importante é que o imposto não seja para tapar outros buracos”, realça.

O impacto da guerra

A baralhar as estratégias e os planos delineados para o longo prazo vão estar, contudo, sempre os acontecimentos do curto prazo. E o exemplo actual, trazido pela guerra na Ucrânia, mostra claramente como é muito provável que se venha a assistir, no processo de transição energética, a vários momentos de travagem ou aceleração, conforme as circunstâncias do momento.

As consequências do actual conflito são, elas mesmas, ainda difíceis de antecipar. Numa análise publicada esta semana sobre o impacto da guerra no petróleo e no gás natural, três analistas da gestora de activos Schroders defendem que “os acontecimentos na Ucrânia apenas irão acelerar a transição energética”, já que “a independência energética através de fontes baratas e sustentáveis vai estar na linha da frente de todos os decisores políticos a partir de agora”. Uma ideia que parece ser confirmada pelas declarações dos líderes políticos.

Josep Borrell, alto representante para a Política Externa e de Segurança da União Europeia (UE), disse, por exemplo que a redução da dependência europeia do gás natural russo deixou de ser apenas uma etapa do processo de transição ecológica em curso, e passou a ser uma “política existencial” para a UE.

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Josep Borrell, alto representante para a Política Externa e de Segurança da União Europeia reuters

A que mudanças é que vamos assistir no curto prazo é que não é claro. “Temos de reduzir a dependência, mas ainda não há a tecnologia necessária para reduzir de imediato a dependência”, assinala Antonieta Cunha e Sá, defendendo que no actual cenário, “o gás natural é o gás de transição”, mas lembrando que “recentemente o que aconteceu, foi que o preço do gás natural subiu e alguns países começaram a usar outra vez o carvão”.

Luís Cruz diz que “na transição para as renováveis, o apoio do gás natural é imprescindível”, mas alerta para o facto de a crise na Ucrânia tornar isto “mais difícil”, já que “o carvão pode voltar a estar a preços muito competitivos”.

Uma análise publicada pelo think tank Bruegel sobre a forma como a UE pode resistir mesmo a cenários drásticos, como o do fecho das torneiras do gás natural vindo Rússia, traça um cenário menos pessimista.

Nessa circunstância, calculam os autores, a Europa teria de aumentar o máximo possível as importações não russas (nomeadamente através do gás natural liquefeito) e garantir uma redução da procura entre 10% e 15% (algo que se estima que seja possível), mas conseguiria atravessar o Inverno e garantir no Verão uma recuperação das reservas que a deixassem a salvo da dependência face à Rússia.

Sejam quais foram os efeitos de este e outros acontecimentos de curto prazo no processo de transição energética, uma lição, contudo, retira-se de mais esta crise. É importante para os países, e em particular para Portugal, saber não tomar as decisões “apenas em cima da hora”, alerta Antonieta Cunha e Sá. “Temos de conseguir internalizar os custos que todas as decisões têm, temos de estimar os custos e benefícios. Mesmo a transição que já foi feita, não estimámos os custos e benefícios. Há muita investigação que pode ser feita e que sirva à decisão política para não se tomarem decisões em cima da hora. Quanto mais pudermos antecipar, mas fácil será a transição”, afirma.

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