Filarmónica de Munique, Festival de Edimburgo e Scala de Milão afastam maestro Valéry Gergiev, apoiante de Putin

Com raízes familiares na Ossétia, o director do Teatro Mariinsky vem manifestando cada vez mais ostensivamente o seu apoio às posições do Kremlin desde o conflito que opôs a Rússia e a Geórgia, em 2008. Aquele que era um dos mais respeitados embaixadores actuais da tradição musical erudita russa parece estar agora a cair definitivamente em desgraça no Ocidente.

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Valery Gergiev com Vladimir Putin em Janeiro de 2018 MICHAEL KLIMENTYEV/SPUTNIK/K/EPA

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A Filarmónica de Munique afastou o russo Valéry Gergiev do cargo de maestro principal da orquestra, que ocupava desde 2015. Instado a demarcar-se até segunda-feira das acções de Vladimir Putin, e a condenar publicamente a invasão da Ucrânia, o maestro manteve-se em silêncio, ignorando o ultimato dado pela instituição a que deveria estar ligado até Setembro deste ano.

O mesmo aconteceu no Scala de Milão, onde Gergiev deveria ter a seu cargo até ao próximo dia 15 a direcção musical da ópera A Dama de Espadas, de Tchaikovski. O maestro não respondeu aos ultimatos do presidente da câmara da cidade, Giuseppe Sala, e do director do teatro, Dominique Meyer, que segundo o jornal italiano Corriere della Sera já estará à procura de um substituto para assegurar as próximas récitas da produção. Gergiev deveria também dirigir a orquestra do Scala na próxima segunda-feira, mas o seu nome já foi riscado do programa.

Sob forte pressão desde quinta-feira, quando as ameaças belicistas de Moscovo se consumaram, o maestro russo, conhecido pelas suas posições pró-Putin e pelo seu alinhamento com o actual regime russo, já tinha sido descartado dos três concertos do passado fim-de-semana no Carnegie Hall, em Nova Iorque, à frente da Filarmónica de Viena. Acabou então por ser substituído pelo canadiano Yannick Nézet-Séguin; também o pianista russo e pró-Putin Denis Matsuev foi retirado do programa, tendo sido chamado para actuar em seu lugar o sul-coreano Seong-Jin Cho.

Gergiev passou a ser persona non grata também em Edimburgo, de cujo festival, um dos maiores eventos culturais do calendário europeu, era presidente honorário. Num comunicado difundido ontem, a organização anunciava ter solicitado a demissão do maestro, com efeitos imediatos.

Mesmo antes das decisões mais radicais agora anunciadas, já o festival Dvorak Praga, na República Checa, viera cancelar liminarmente a presença do maestro, que ali iria dirigir a Filarmónica de Munique a 9 de Setembro. Igual decisão tomou na segunda-feira o festival de música clássica de Verbier, na Suíça, garantindo também que recusará quaisquer donativos vindos “de indivíduos alvo de sanções pelos governos do Ocidente” e que excluirá “todos os artistas publicamente alinhados com as acções do Governo russo”.

Um amigo tóxico

Com raízes familiares na Ossétia, tanto por via paterna como por via materna, Gergiev deu as suas primeiras mostras públicas de alinhamento político com o Kremlin em 2008, quando a Geórgia e a Rússia entraram em conflito na Ossétia do Sul. Acusando o governo georgiano de massacrar civis, precipitando assim a intervenção militar russa – uma versão dos factos que a União Europeia viria a confirmar um ano depois , o maestro deslocou-se pessoalmente a Tskhinvali para ali dirigir um concerto junto às ruínas do Parlamento da Ossétia do Sul, em tributo às vítimas da guerra.

Quatro anos mais tarde, em 2012, Gergiev já era um declarado adepto de Putin, que apoiou de forma sui generis na sua terceira corrida às presidenciais russas, com um anúncio em que elogiava o crescente respeito internacional pelo país desde a chegada do ex-KGB ao poder.

Em Dezembro desse ano, o maestro subscreveu as medidas repressivas que a administração Putin aplicou às Pussy Riot, sugerindo que a motivação destas era comercial e não ideológica. “Não creio que isto tenha nada a ver com liberdade artística... Porquê fazer um statement político na Catedral de Cristo Salvador? Porquê com gritos e danças? Não é necessário fazê-lo num lugar que é sagrado para tantas pessoas”, declarou então ao jornal britânico The Independent. “Muitas pessoas me dizem que estas raparigas são potencialmente um óptimo negócio. Suponhamos que alguém criou tudo isto para produzir uma banda que possa ganhar milhões e milhões em digressões [internacionais]”, acrescentava.

Com a invasão da Crimeia, em 2014, o nome de Gergiev voltou a aparecer entre os de outras figuras “notáveis” das artes do país que aplaudiram os avanços da Rússia. Numa carta aberta publicada no site do Ministério da Cultura de Moscovo a 11 de Março desse ano, os signatários, entre os quais se incluíam o já referido pianista Denis Matsuev e o director do Bolshoi, Vladimir Urin, declaravam “o seu firme apoio à posição do Presidente”.

Um ano e meio mais tarde, quando chegou à Filarmónica de Munique, o maestro viria a dizer que não tinha de facto assinado a carta e que apenas falara sobre o assunto pelo telefone com o então ministro da Cultura Vladimir Medinsky. Mas o seu currículo em matéria de endorsements políticos e as suas ligações pessoais com Putin, que segundo o New York Times datarão do tempo em que o actual Presidente era uma proeminente figura da administração local de São Petersburgo, levaram a que o Ministério da Cultura ucraniano o banisse de quaisquer actuações no país desde então.

Apesar das reservas e dos protestos que o seu nome vinha suscitando, Valéry Gergiev continuava porém a ser um maestro-estrela, extraordinariamente reverenciado nos palcos da Europa e dos Estados Unidos. O actual conflito com a Ucrânia arrisca-se agora a constituir um ponto de não-retorno na sua fulgurante carreira, talvez irreversivelmente manchada por uma amizade tóxica.