Recém-casados, septuagenários, ex-ministros: os ucranianos que pegam em armas para defender o país

Para estes civis sem treino militar, os riscos são acrescidos, e o seu envolvimento pode mesmo contribuir para escalar o conflito no terreno. Mas o Presidente ucraniano pediu e milhares de cidadãos estão a responder ao apelo.

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Dois elementos das Forças de Defesa Territoriais ucranianas numa rua de Kiev, no sábado, identificados pelas braçadeiras amarelas CARLOS BARRIA/reuters

Na quinta-feira, depois de a Rússia ter dado início à invasão da Ucrânia, o Presidente Volodimir Zelensky escrevia no Twitter: “Daremos armas a qualquer pessoa que queira defender o país. Estejam prontos para apoiar a Ucrânia nas praças das nossas cidades.” Desde então, milhares de civis responderam ao apelo e estão a alistar-se no Exército ucraniano, a criar milícias paralelas ou a produzir armamento artesanal para tentar resistir às muito mais numerosas e bem-equipadas forças russas. Entre eles estão um ex-ministro, um septuagenário e um casal que oficializou o matrimónio enquanto as primeiras bombas caíam.

Os riscos de envolver uma facção civil no conflito são grandes. Não só para estes homens e mulheres sem formação militar ou de defesa que se vêem no centro de um conflito armado, mas também pelos efeitos-dominó que daí podem resultar — como o aumento do nível de violência nas ruas ou a “oferta” ao Exército russo de novos alvos contra os quais disparar e de pretextos para abrir fogo indiscriminadamente. É o que assinala o diário norte-americano Washington Post a partir de Kharkiv, a segunda cidade do país, situada a 45 minutos de carro da fronteira com a Rússia. Pelo terceiro dia consecutivo, a artilharia russa abatia-se sobre a região e cerca de cem pessoas estavam na fila para se alistar. Cenas similares são relatadas por outros órgãos de informação em diferentes localidades ucranianas.

Paralelamente, o fluxo de ucranianos que procuram refúgio fora das grandes cidades do país invadido ou fora das suas fronteiras também está longe de se estancar. Para ficar mais completo, o retrato do heroísmo e da capacidade de resistência dos ucranianos não deve escamotear os perigos que correm os civis, nem esquecer que fugir da Ucrânia é uma opção agora interdita aos homens entre os 18 e os 60 anos, abrangidos pela lei marcial.

Volodimir Omelyan tem 43 anos e foi ministro das Infra-estruturas da Ucrânia entre 2016 e 2019. Na sexta-feira, relata a rádio pública norte-americana, alistou-se. “Não sou um assassino nato e nunca sonhei em ser esse tipo de pessoa”, disse à NPR.

Desde então descreve o que vê nas ruas ucranianas através da sua conta verificada no Twitter. Considera que é a melhor forma de proteger a sua família. Num dos seus posts deste domingo, partilha o vídeo de um soldado caído numa rua destruída em Irpin, uma cidade na província de Kiev Oblast, próxima da capital; a sombra de quem capta o vídeo sugere alguém armado e com capacete. “Vamos ganhar”, confiava o ex-ministro e agora diplomata quando falou à NPR.

"O que há a temer?”

Entre os milhares de ucranianos que se alistaram ou que estão a organizar a resistência civil à invasão russa encontram-se também Yaryna Arieva e Sviatoslav Fursin, que, como conta a CNN, se casaram na quinta-feira numa das capelas do Mosteiro de São Miguel em Kiev, o emblemático monumento barroco de cúpulas douradas da capital do país. No final da cerimónia, Arieva, de 21 anos, estava emocionada. Iam casar-se a 6 de Maio, mas a crise militar precipitou-os não só para a cerimónia mas também para o exército. “É o momento mais feliz da tua vida e sais [da igreja] e ouves aquilo”, disse à CNN, referindo-se às sirenes de aviso de ataque aéreo.

De seguida, o casal deslocou-se até ao Centro de Defesa Territorial e disponibilizou-se para o esforço de guerra. “Vamos lutar pela nossa pátria.” Não sabiam que tarefas iriam desempenhar. “Talvez simplesmente nos dêem protecção anti-balas e vamos combater”, estimava Arieva.

“O que há a temer?”, perguntava por sua vez de forma retórica o jovem Yevgeniy Belinkyi, de 19 anos, ao Washington Post. “Quando estou à espera, tenho medo. E aqui não há nada a temer. Aqui sei o que se passa”, dizia na fila para se alistar em Kharkiv.

Já em Lviv, a poucos quilómetros da fronteira com a Polónia, o septuagenário Orest Gaworsky inscrevia-se como voluntário civil, função que já desempenhou na região de Donbass em 2015. “Sou demasiado velho para correr com uma arma. Mas posso disparar sentado”, disse ao Washington Post. “Vamos disparar, faremos cocktails molotov, faremos tudo. Vamos combatê-los com forquilhas!”

O ministro do Interior ucraniano, Denis Monastyrsky, informou no sábado numa mensagem em vídeo que só em Kiev já foram distribuídos aos voluntários cerca de dez milhões de balas, granadas e lança-granadas e 25 mil espingardas automáticas. Nas ruas, os jornalistas testemunham a produção de cocktails molotov — ou bombas incendiárias artesanais —, nas estradas erguem-se barreiras informais, valendo tudo para abrandar o tráfego que por ali passe. A aplicação Telegram, relata o Washington Post, está a ser usada para sugerir aos ucranianos que retirem a sinalização e as placas das estradas de modo a dificultar a vida aos veículos armados russos.

A BBC recolheu no sábado, em Dnipro, imagens de um grupo de mulheres de todas as idades a confeccionar um arsenal de cocktails molotov com garrafas de cerveja, esferovite e raladores. A mesma estação, já em Kiev, mostra um centro de distribuição de armas onde os voluntários, depois de fardados, são identificados por braçadeiras amarelas feitas de fita-cola.

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