O futebol enfrenta a Rússia, contra a subserviência moral

Contratos e patrocínios “rasgados”, eventos deslocalizados e batalhas jurídicas no horizonte, num assomo de decência contra a dependência financeira de oligarcas e gigantes económicos russos.

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A Gazprom, empresa russa, é um dos principais patrocinadores da Liga dos Campeões Reuters/Ruben Sprich

O futebol e a UEFA – a exemplo do que vai sucedendo no desporto em geral - não demoraram muito a reagir e a responder com posições e acções firmes à agressão russa na Ucrânia, condenando a declaração de guerra do Kremlin de uma forma clara.

Clubes como o Schalke 04 e Manchester United removeram os patrocínios milionários de grandes empresas russas como a Gazprom e a Aeroflot, respectivamente. A UEFA transferiu a final da Liga dos Campeões de São Petersburgo para Paris, ao mesmo tempo que as selecções da Polónia, República Checa e Suécia pedem à FIFA que apresente alternativas/soluções relativamente à realização dos jogos em solo russo referentes aos play-off e final do apuramento para o Mundial do Qatar.

O futebol europeu vê-se, assim, confrontado com uma situação que clubes e organizações têm varrido para debaixo do tapete, procurando agora improvisar soluções urgentes para evitar maiores constrangimentos financeiros.

Mas ao pretender eliminar sem pré-aviso os patrocinadores russos desta equação, os responsáveis não querem nem podem ignorar as consequências legais dos seus actos, o que abrirá novas frentes de uma batalha jurídica de proporções imprevisíveis.

Contudo, dada a gravidade da situação, avançam as primeiras medidas, uma espécie de “sanções” desportivas que já provocaram indignação em Moscovo.

Apesar de também, tal como no plano geopolítico, a Europa dar sinais de alguma falta de preparação e antecipação para este tipo de cenário, este pode ser o momento para avaliar, quantificar e estruturar o futuro no que diz respeito a uma inegável dependência de capitais e financiamentos de Estados e regimes menos transparentes, como é o caso flagrante do Qatar, China e Rússia, a que poderíamos acrescentar vários outros de África, Índia e mesmo dos EUA.

A própria UEFA apresenta um menu de altos patrocinadores para a Liga dos Campeões, por exemplo, lista de que constam – além da russa Gazprom – multinacionais espanholas, neerlandesas, japonesas e norte-americanas.

Nada, portanto, que FIFA e UEFA desconheçam em absoluto, até porque se verificarmos algumas das escolhas para a organização dos principais eventos, para além da discussão actual relativamente à necessidade de realizar o Campeonato do Mundo de dois em dois anos, depreende-se o nível de dependência de capitais como os russos.

Presidente do Comité de Governação da FIFA durante dez meses, entre 2016 e 2017, Poiares Maduro tem sido uma voz crítica das políticas da UEFA, em especial da permissividade que tem levado aquele organismo a permitir que interesses comerciais influenciem a estrutura das competições, favorecendo os grandes clubes e principais países, conforme referiu em entrevista à Agência Lusa.

À luz desta realidade, antes mesmo da pandemia do novo coronavírus, aquele professor universitário percebeu que reformas como a tentativa de afastar do Conselho da FIFA o então vice-primeiro-ministro russo Vitaly Mutko dificilmente poderiam ser tomadas sem a intervenção da União Europeia, já que a família do futebol continua, de certa forma, refém de pressões políticas, preso a uma teia tecida segundo uma lógica de cartel.

Ora, neste momento, é evidente que inúmeros clubes europeus começam a fazer contas não só à supressão de patrocínios indesejáveis - voluntária ou involuntariamente - mas também à realidade com que alguns oligarcas, detentores ou accionistas maioritários de emblemas como o Chelsea, o Bournemouth, o Mónaco, o Cercle Brugge ou o Vitesse, se deparam face às sanções económicas impostas pelos membros da NATO.

O futebol parece disposto a dar o exemplo. Mas a que preço e até que profundidade? Os clubes em Portugal, Espanha e Itália não enfrentarão, à partida, pressões políticas por não terem qualquer dependência da Rússia a este nível. Na Alemanha, as regras impedem que um clube seja detido, maioritariamente, por um accionista. Mas como sabemos, a questão dos patrocínios é distinta. Seja como for, o futebol europeu tem nesta crise uma oportunidade para o momento de introspecção que pode lançar as bases de uma regeneração, ainda que se percebam nitidamente as fronteiras da utopia.

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