Cartas abertas de desinformação médica

Na edição de 26/01/2022 o PÚBLICO deu conta de uma carta aberta de um grupo de médicos dirigida às autoridades de saúde a pedir a suspensão cautelar da vacinação contra a SARS-CoV-2 em crianças e jovens. Um dos subscritores é o presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, Jorge Amil, que se tem multiplicado em declarações na comunicação social a questionar a segurança e eficácia das vacinas. Duas semanas depois veio a público uma nova carta em que os signatários acusam o bastonário da Ordem dos Médicos (OM) de ter tratado de forma depreciativa o pedido de suspensão da vacinação e de ter violado os deveres de representação profissional.

Alguns dos subscritores são os mesmos que a 16/07/2021 se manifestaram, também em carta aberta, contra as medidas de confinamento, e que em Março do ano passado foram notícia por estarem a pressionar o Infarmed e a Direção Geral de Saúde (DGS) para a utilização do medicamento antiparasitário ivermectina contra a covid-19, apesar de tal ser desaconselhado pelas agências reguladoras europeias e dos Estados Unidos da América (EUA) e de se saber desde há muito as consequências nefastas que a prescrição deste antiparasitário teve no combate à pandemia na América Latina.

Na missiva dirigida ao bastonário da OM, os signatários autoavaliam-se como “médicos com competência e méritos demonstrados nos respetivos domínios de atividade”. De entre estes inclui-se o cardiologista e geriatra João Gorjão Clara, defensor do uso da hidroxicloroquina em idosos dos lares, e dois membros do extinto grupo negacionista Médicos pela Verdade, o psiquiatra Ramiro Araújo, já acusado em Agosto de 2020 de falta de credibilidade quando anunciou nas redes sociais a cura para a Covid-19, e o radiologista Fernando Torrinha. Outros dos subscritores da carta aberta, o anestesiologista Pedro Girão, a cardiologista Teresa Gomes Mota, o especialista em cardiologia e medicina interna Jacinto Gonçalves, o internista António Pedro Machado, e o infecciologista Tiago Marques, têm assumido em artigos de opinião um posicionamento crítico em relação à vacinação contra a Covid-19 em crianças e jovens, com um argumentário próximo da visão negacionista antivax: “experiência terapêutica”, “narrativa oficial do poder político que viola direitos humanos e liberdades civis”, “andamos a brincar com a saúde futura das nossas crianças”, “não é ético vacinar os mais jovens para proteger os mais velhos”, e “as vacinas não se justificam porque não previnem a infeção e a transmissão”.

A fundamentação a que recorrem os signatários para pedir a suspensão da vacinação contém inverdades que importa esclarecer, nomeadamente quando afirmam que a Suécia, Dinamarca, Noruega, Reino Unido e Alemanha, decidiram reapreciar o benefício da vacinação contra a Covid-19 em crianças. Na Noruega, o Instituto de Saúde Pública anunciou a 14 de Janeiro a oferta da vacinação da faixa etária dos 5 aos 11 anos e a administração da segunda dose nas crianças dos 12 aos 15 anos. Na Dinamarca, a decisão de vacinar as crianças dos 5 aos 11 anos foi tomada em Novembro de 2021 pela Autoridade de Saúde Dinamarquesa. Em Fevereiro deste ano, considerando o elevado grau de imunidade já atingido foi decidido deixar ao critério dos pais a continuação da vacinação. No Reino Unido, a 22 de Dezembro de 2021, o Joint Committee on Vaccination and Immunisation (JCVI), orgão consultivo do Governo britânico, deu luz verde à vacinação das crianças dos 5 aos 11 anos, com prioridade nas crianças de risco e com comorbilidades, e a partir de Abril vai ter início a vacinação generalizada nesta faixa etária, de acordo com uma nova recomendação do JCVI de 16 de Fevereiro. Decisão idêntica foi tomada na Alemanha em Dezembro pelo Standing Committee on Vaccination. Na Suécia, país que tem seguido uma estratégia própria de combate à pandemia, a Agência de Saúde anunciou a 27 de Janeiro em conferência de imprensa que não iria recomendar a vacinação universal das crianças dos 5 aos 11 anos, mantendo no entanto a vacinação em curso das crianças de risco. Quanto à referência na carta aberta à “existência de efeitos adversos documentados em registos amplos de farmacovigilância como o VAERS americano, ou a EudraVigilance europeia”, ocorre perguntar aos signatários se entendem que as autoridades de saúde dos países onde decorre a vacinação de crianças e jovens, e as entidades reguladoras da Europa e EUA, estão a ignorar esses “efeitos adversos” e a promover uma estratégia de vacinação de alto risco. Não cabendo num texto de opinião verter o “estado da arte” sobre a Covid-19 e vacinação das crianças, limitar-me-ei a sugerir aos subscritores da carta aberta que leiam a opinião dos seus pares das Associações Pediátricas de Portugal, Espanha, França, Itália, Bélgica, e EUA, entre muitas outras.

A especulação sobre riscos a curto, médio e longo prazo, da vacinação em crianças e jovens, induz naturalmente nos pais um sentimento de medo e hesitação em vacinar os seus filhos. Em Portugal, num universo de cerca de 626.000 crianças na faixa etária dos 5 aos 11 anos, a 20 de Fevereiro, 83.691 (13.4%) crianças tinham a vacinação primária completa e 329.958 (52.7%) tinham a vacinação iniciada, números que apesar de serem melhores do que os registados noutros países europeus, estão aquém das expectativas. Para combater a desinformação médica é necessário que a OM, a DGS e a Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP) se empenhem numa comunicação pedagógica à população. Já aqui expressei a opinião que a DGS devia levar a cabo uma campanha nos media para sensibilizar os pais a vacinarem as crianças, opinião também corroborada por um grupo de médicos. Também é necessário que a OM atue no plano disciplinar, tal como o fez o ano passado em relação a um médico de Coimbra que organizou uma marcha contra a vacinação em menores.

Numa nota da SPP os pediatras referem que as vacinas contra a covid-19 são eficazes e seguras e recomenda aos pais que se aconselhem com médicos e não através das redes sociais. O problema é que também há médicos que reproduzem a desinformação científica das redes sociais.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários