Coordenadas da Pós-Pandemia

Talvez esta pandemia nos leve a redefinir algumas coordenadas - para o Homem, para o cientista, para o político. Para todos nós.

Durante o confinamento espoletado no último surto de peste negra, ocorreu a mais célebre epifania da história da ciência. Newton, em regime de teletrabalho, refletiu sobre a queda de uma maçã e assim mudou a compreensão sobre o nosso lugar no Universo. Seria incauto ambicionar tamanho alcance, mas talvez esta pandemia nos leve a redefinir algumas coordenadas.

1. O lugar do Homem

No final do ano passado, morreram dois dos mais notáveis biólogos, Edward Wilson e Thomas Lovejoy. Ambos passaram uma vida a defender a importância da biodiversidade. Há mais para além do Homem e isso deve ser preservado, até para que o próprio Homem se preserve. Lovejoy, alcunhado o “padrinho da biodiversidade”, ensinou-nos num dos seus últimos artigos que a diversidade da vida é essencial para a nossa própria saúde (e vida) e alertou para o papel negativo que a desflorestação tem na propagação de novas pandemias. Concluiu, exortando: “Healthy future for humanity and a healthy biodiverse planet go hand in hand”. Após uma vida dedicada à defesa da Amazónia, Lovejoy morre num ano particularmente terrível da sua desflorestação (à dimensão de mais de 4 mil campos de futebol destruídos por dia).

O antropocentrismo que nos tem norteado revela-se obsoleto e, na verdade, autofágico.

Não só o Universo não gira em torno da Terra, como a Terra não gira em torno do Homem. A ciência já derrubou, há muito, as premissas do antropocentrismo, porém a resistência prevalece. É paradigmático observar o escárnio de que ainda são alvo aqueles que defendem outros seres vivos, encapsulados no “clube dos gatinhos”; ou a insistência em rotular como “tradição” a tortura institucionalizada de animais. A ciência já mostrou há muito que o Homem obedece às mesmas leis de Newton e não é nenhum produto exclusivo do desígnio divino, mas antes um continuum evolutivo, num elo que o une à mais básica forma de vida. Para além de uma convicção imaginada, não somos assim tão especiais e tão-pouco detemos qualquer procuração para governar ad extremum este planeta a nosso bel-prazer. Não é esse o nosso lugar no mundo.

Talvez a vulnerabilidade exposta durante a pandemia ajude a redefinir essas coordenadas. Reconhecer a interdependência da natureza e o respeito pelos outros seres vivos. Retornar à sabedoria clássica – a sympatheia advogada pelos estóicos e nas Meditações de Marco Aurélio (“o que prejudica a colmeia também prejudica a abelha”). E porque não entregarmo-nos, mais e mais, à biofilia (a afinidade inata dos seres humanos pelo mundo natural), um conceito amplamente popularizado por Edward Wilson?

Não é panfletismo new age, antes o reconhecimento do que a ciência nos diz, tal como um dia nos disse que, afinal de contas, é a Terra que gira em torno do sol.

2. O lugar do cientista

Nesta pandemia, a ciência revelou-se, mais uma vez, a grande solução para os nossos problemas. E, em contraponto, a pseudociência um fator de mau prognóstico para esses mesmos problemas. A frequente postura, algo paternalista, de que alternativas à ciência, como as “naturais” medicinas alternativas, são como que “placebos” inócuos, que não fazendo grande coisa também não fazem grande mal, tem de ser revista. Durante a pandemia, ficou bem claro que a distorção do método científico se traduz num incorrigível retrocesso, seja no combate à doença a nível individual, seja à escala populacional. Há indubitável sobreposição entre aqueles que defendem acerrimamente as ditas medicinas alternativas e a horda negacionista que minou qualquer avanço no combate à pandemia. Também as coordenadas das medicinas alternativas merecem, por isso, ser repensadas. O seu lugar na nossa sociedade deve ser outro. Não sei qual, mas outro.

O lugar do cientista também pode ser repensado, particularmente na intersecção com outros segmentos da sociedade. Escancarou-se a dimensão do problema de comunicação entre o cientista e o não cientista. Quando aqueles que percebem realmente sobre um determinado assunto se abstêm de o comunicar, isso dá lugar à desinformação. E dá lugar àqueles que, não percebendo muito sobre o assunto, querem aparecer para falar sobre ele. Uma forma ligeira de síndrome de Heróstrato (a fama a qualquer preço). O termo cientista é muito lato. Por exemplo, não é por um químico compreender os mecanismos moleculares subjacentes à condensação da água que é a melhor pessoa para nos explicar como lidar com a tempestade que se aproxima. Mutatis mutandis, na pandemia nem todos os cientistas estarão capacitados para melhor nos aconselhar sobre epidemiologia e saúde pública.

Por inerência de funções, o cientista deve ser o primeiro a ser rigoroso e a abster-se de comentar sobre aquilo que verdadeiramente não domina. Deve compreender o seu lugar, as coordenadas que ocupa.

3. O lugar do político

Há um século atrás, o epidemiologista Wade Frost exortou aqueles que tomam decisões em saúde pública a estarem preparados para explicar perante o público as razões de cada investimento feito e apresentar-lhe alguma estimativa do retorno que se espera obter (sic). Não sei se a este respeito houve um grande progresso, mas isto implica gerar, assimilar e comunicar evidência científica. Esta pandemia expôs, talvez mais que nunca, a necessidade de haver um diálogo estreito entre decisores e peritos. É um affair escorregadio, são linguagens diferentes, não basta estarem todos no mesmo lugar semanalmente. Os políticos têm de incorporar o que a melhor evidência científica aponta, mas também têm de saber ler a opinião pública, que é maioritariamente leiga em saúde pública. Para o consciencioso, não é um lugar fácil para se estar.

A comunicação social tem um papel aqui muito importante enquanto modeladora da nossa mundividência. A sua expressão mais massiva através telejornais, não bastando o estranho lugar de se encontrar ensanduichada entre telenovelas e reality shows, dilui notícias relevantes num oceano de fait divers e vox populi. É uma ligeira forma de desinformação, porque é uma adulteração de prioridades. Apesar da obsessão pela pandemia, o melhor conhecimento científico sobre a covid-19 é rarefeito nos conteúdos dos telejornais e substituído pelos testemunhos e casos isolados. Um estudo recente mostra que, quando temos de tomar decisões relacionadas com a nossa saúde, tornamo-nos particularmente vulneráveis aos tais casos isolados (onde há maior carga emocional), ao invés de nos nortearmos pelos números crus e frios da estatística (anecdotal bias). Ora, é precisamente isto que a comunicação social deveria contrariar, não atolar o seu tempo de antena em casos específicos (tipicamente dramáticos), porque, não sendo necessariamente representativos e elucidativos, têm muito impacto na opinião pública. Se a comunicação social apontasse mais para as coordenadas certas (e científicas), ajudaria certamente os políticos a conciliarem um desejado modus operandi de decisões baseadas em evidência com aquilo que lêem da opinião pública.

Por fim, o lugar de todos nós. As coordenadas que nos devem reger. Continuamos a ouvir discursos, autointitulados vanguardistas e “liberais”, que insistem em colocar o cifrão, como sempre, no lugar da frente. Alegam a ideia inovadora de que é preciso primeiro gerar riqueza e que o resto virá por arrasto: as políticas verdes, a preservação da natureza, a proteção dos outros seres vivos, o combate às alterações climáticas, a nossa própria saúde..., tudo virá naturalmente por arrasto. Há que continuar a confiar no farol do capital.

Um dos conhecidos aforismos de Einstein, o grande sucessor de Newton na demanda pela compreensão do nosso lugar no Cosmos e a quem devemos, por exemplo, a precisão das coordenadas do GPS, indica-nos a insanidade de continuar a fazer o mesmo esperando resultados diferentes. Talvez fosse melhor reposicionarmos o lugar que o dinheiro tem nas questões essenciais da nossa vida e resguardar o futuro de todos os que coabitam nestas coordenadas do Universo. Parece que a queda de uma maçã não será suficiente para refletirmos sobre isto, tão-pouco a queda de uma floresta inteira. Talvez a pandemia possa ajudar um pouco (ou não).

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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