Violência sexual baseada em imagens (VSBI): quando a imagem é uma arma

Neste dia em que se assinala, internacionalmente, a Internet Segura, urge garantir que esta será também um espaço sem violência para todas as raparigas e mulheres.

Nos primeiros dias do ano, Basant Khaled, uma adolescente egípcia de 17 anos, pôs termo à vida após a divulgação online de imagens manipuladas de teor sexual, nas quais o seu rosto aparecia colado a um corpo que não era o seu. Basant foi vítima de violência sexual, sem que qualquer dos perpetradores lhe tenha tocado: não era sequer Basant naquelas imagens, mas as consequências foram reais. Basant Khaled é apenas um dos muitos casos conhecidos de um extenso universo de vítimas de violência sexual perpetrada com o recurso a imagens.

A violência sexual baseada em imagens (VSBI) é, com frequência, reduzida à divulgação não consentida de imagens íntimas (fotografias ou vídeos), comummente conhecida como “pornografia de vingança” (também referida como “pornografia não consentida”). Estas expressões são, contudo, imprecisas: nem todos os casos de divulgação não consentida de imagens íntimas são motivadas por vingança pessoal ou têm lugar no término de uma relação. E podem nem constituir, de forma rigorosa, pornografia.

Há outras formas de VSBI para além da partilha (ou ameaça de partilha) não consentida de imagens íntimas, como a captação não autorizada, de que são exemplo a gravação de encontros sexuais, sem consentimento de uma das partes, ou as fotografias não consentidas de partes do corpo das mulheres. A VSBI inclui também a produção e/ou manipulação de imagens íntimas, como lembra o caso de Basant Khaled, acima referido. Abarca ainda a gravação de ataques sexuais e a extorsão sexual (ou sextortion), na qual a vítima é chantageada com a divulgação das imagens íntimas caso não ceda ao envio de novas imagens, ao pagamento de uma quantia financeira ou a encontros sexuais. Também o envio não solicitado de imagens de genitais, conhecido como cyberflashing, é enquadrado como uma forma de VSBI.

Considerando a latitude de comportamentos que integram a VSBI, as académicas Clare McGlynn, Erika Rackley e Ruth Houghton propõem que se aborde esta forma de violência como um continuum, adotando a expressão da socióloga Liz Kelly, para dar conta da extensão, abrangência e omnipresença da violência sexual a que as mulheres e raparigas são submetidas no quotidiano. Mais do que uma hierarquização predeterminada, há que compreender e identificar a articulação entre as diferentes formas de violência sexual.

O Grevio, grupo de peritas e peritos responsáveis pela avaliação da implementação da Convenção de Istambul, afina pelo mesmo diapasão, na Recomendação Geral n.º 1, sobre a dimensão digital da Violência Contra as Mulheres (RG n.º 1), adotada a 20 de outubro de 2021. Adicionalmente, salienta o Grevio: “a violência de género contra as mulheres, na esfera digital pode ser particularmente acentuada por fatores como a deficiência, orientação sexual, filiação política, religiosa, origem social, estatuto migratório ou de figura pública, entre outros”.

É, de facto, de um continuum de violência que falamos: a Violência Sexual com Base em Imagens interseta-se com outras, nomeadamente com a violência doméstica e no namoro, sendo usada como forma de controlo coercivo (p.e., através da ameaça de divulgação de imagens íntimas). A VSBI interliga-se ainda com outras formas de exploração sexual (como a comercialização de vídeos de teor sexual divulgados sem consentimento em plataformas digitais e sites de pornografia).

A potencial danosidade da VSBI é bem conhecida e está documentada. Mesmo quando o corpo não é (diretamente) agredido, as consequências podem ser devastadoras e prolongadas, e incluir ansiedade, isolamento, quadro depressivo e ideação suicida. Com frequência, as vítimas são profissionalmente lesadas e as suas relações íntimas e familiares são abaladas.

Existem, contudo, muitas resistências ao reconhecimento da VSBI como violência sexual de facto: tendemos a minimizar ainda mais os seus efeitos e a desconsiderar o seu estatuto, por comparação com a violência sexual de expressão física. Desqualificamos a violência na esfera digital, como se fossem “apenas” imagens e o online uma esfera secundária, “virtual”. Latente a esta resistência está uma matriz fisicalista, que assume que a violência sexual é necessariamente - ou sobretudo - uma agressão física.

Importa, assim, contribuir para o reconhecimento da VSBI, reiterando a sua natureza enquanto violência sexual, porquanto constitui uma violação da autonomia e liberdade sexual das mulheres. A Recomendação Geral n.º 1(RG), do Grevio dá passos largos neste sentido, instando os Estados Parte, nos quais Portugal se inclui, a reconhecer a natureza “genderizada” da violência na esfera digital.

Reconhecer a VSBI não significa que esta seja simétrica ou equivalente à violência sexual perpetrada fisicamente (já reconhecemos, aliás, outras formas de violência sexual que podem não incluir o contacto físico, como algumas formas de assédio sexual). Há, de facto, dinâmicas próprias da VSBI que são específicas do contexto digital, onde a potencial perenidade das imagens introduzem novos problemas, diferenças e especificidades. Seguir o rasto das imagens e contactar os motores de busca e páginas para as retirar pode ser um longo, penoso e frustrante caminho.

A violência sexual não é estanque, ahistórica ou biologicamente determinada. É sempre situada no contexto social, histórico e tecnológico. A expansão da tecnologia em todas as esferas da vida social, nomeadamente a da sexualidade, impõe que repensemos as abordagens e respostas à violência sexual. No contexto digital, uma imagem pode ser veículo de violência sexual. Pode, inclusivamente, ser uma arma mortal, como ilustram tantos casos.

Em Portugal, a associação Não Partilhes e o movimento Corta a Corrente, assim como o projeto “Faz Delete”, da Rede de Jovens para a Igualdade, têm contribuído para a discussão pública em torno da VSBI. É necessário continuar este caminho. É possível, e urgente, reconhecer todas as formas de violência sexual, sem menosprezo de nenhuma das vítimas-sobreviventes.

Neste dia 8 de Fevereiro em que se assinala, internacionalmente, a Internet Segura, urge garantir que esta será também um espaço sem violência para todas as raparigas e mulheres.

As autoras escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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