Estatuto da Farmácia Hospitalar: o futuro é agora

Estarão os decisores políticos recém-legitimados dispostos a olhar para os farmacêuticos sem preconceitos e abertos à sua colaboração, permitindo a sua efectiva diferenciação profissional?

1. A 2 de Fevereiro de 1962 publicava-se o Decreto-Lei n.º 44 204 – “Regulamento geral da Farmácia hospitalar”, que cumpre agora sessenta anos. Diploma inovador à época, inclusivamente na Europa, continua ainda em vigor – e ainda sem pleno cumprimento. Fora do Diário da República existe, ainda, algum desconhecimento sobre em que consiste o acto do farmacêutico hospitalar e a importância do mesmo. Deve antes de mais dizer-se que esta área muito evoluiu desde o trabalho pioneiro de Aluísio Marques Leal e Carlos Silveira: da mera distribuição e preparação dos medicamentos (hoje em âmbitos muito diferenciados, como a quimioterapia, as células car-t ou a vacinação covid-19), o farmacêutico hospitalar passou a assegurar a terapêutica medicamentosa aos cidadãos com doença tendo a preocupação de garantir a sua segurança, qualidade e efectividade; a integrar as equipas de prestação de cuidados; a fazer investigação científica e clínica; a articular-se com os cuidados primários e continuados, nos seus diversos âmbitos.

2. Partindo do mote “o medicamento certo para o doente certo”, fica patente o âmago da intervenção do farmacêutico hospitalar como factor optimizador dos resultados em saúde, centrados na percepção e benefício efectivo dos cidadãos. O que diferencia esta intervenção? Pela sua proximidade com as tecnologias de saúde (não apenas o medicamento, mas também os dispositivos médicos e as terapias avançadas), o farmacêutico hospitalar permite a redução de erros nestes circuitos, através da sua actividade clínica: revisão, validação e reconciliação da terapêutica; colaboração e assessoria aos prescritores; participação em visitas médicas; dispensa de medicamentos em regime ambulatório, associada a educação para a saúde às pessoas com doença e cuidadores, contribuindo para a adesão terapêutica; farmacovigilância.

3. Os aspectos fármaco-económicos constituem também uma importante área de intervenção profissional: a avaliação de alternativas terapêuticas e a monitorização de novas tecnologias permitem, em contexto de Comissão de Farmácia e Terapêutica, avaliar o seu custo-efectividade, determinando a sua inclusão, ou não, entre o arsenal terapêutico das instituições. Levantam-se aqui questões fundamentais relativas à equidade do acesso aos recursos em saúde por parte dos cidadãos, e em que os farmacêuticos hospitalares têm papel relevante – apesar de representarem apenas cerca de 1% dos recursos humanos do Serviço Nacional de Saúde (SNS), gerem cerca de 20% do seu orçamento, cabendo-lhe a obrigação de uma gestão rigorosa que permita a libertação de recursos para investir em saúde.

4. Passadas seis décadas, o que resta fazer? Tudo – ou quase (não desmerecendo o trabalho que tantos já levaram a cabo). A carreira farmacêutica, publicada em 2017, não está plenamente implementada. A residência farmacêutica (já prevista em 1962, no Artigo 18.º do Estatuto, sob a designação de “internato farmacêutico”) marca passo, não permitindo o acesso dos jovens farmacêuticos à especialidade e ao SNS. Apesar do discurso simplista sobre a falta ou excesso de trabalhadores em funções públicas, um estudo da Nova SBE, publicado em Junho de 2021, calculava em 25% a falta de profissionais para colmatar apenas as necessidades de preenchimento dos quadros de pessoal e em centenas de milhares de euros os custos indirectos associados à não intervenção do farmacêutico em pontos-chave do sistema.

Temos ainda a realidade dos sectores privados e social, onde se põe o desafio de uma valorização do farmacêutico hospitalar de acordo com os parâmetros inscritos no Estatuto da Farmácia Hospitalar e da Carreira Farmacêutica – ao contrário de médicos e enfermeiros, e, salvo algumas excepções, as condições de exercício profissional para o farmacêutico hospitalar fora do SNS não são atractivas nem correspondem à sua diferenciação funcional. É preciso reflectir sobre a importância do farmacêutico nos cuidados de saúde primários e da sua necessidade (aliás, legalmente consagrada em 2012) nos cuidados continuados.

5. Num novo quadro político decorrente das eleições legislativas e com novos órgãos a eleger brevemente na Ordem dos Farmacêuticos, poder-se-ão desenvolver as condições para concretizar os objectivos enunciados. Todavia, permanecem algumas questões. Estarão os decisores políticos recém-legitimados dispostos a olhar para os farmacêuticos sem preconceitos e abertos à sua colaboração, permitindo a sua efectiva diferenciação profissional? Em que medida as alterações previstas na auto-regulação das profissões podem influenciar a intervenção do farmacêutico na área hospitalar? As escolas de ciências farmacêuticas estão dispostas a implantar de vez um verdadeiro ensino clínico pré-graduado? E os farmacêuticos estarão disponíveis para assumir responsabilidades e trabalhar interdisciplinarmente (mesmo com resistências iniciais) ou cederão a alguns “cantos de sereia” de certos sectores da profissão que, no embalo do legítimo descontentamento e cansaço dos profissionais, acenam com posturas populistas e simplistas, ainda que agradáveis à superfície?

Das respostas a estas perguntas pode resultar uma boa parte do futuro do SNS e da garantia da sua sustentabilidade. Não tenhamos medo de lhe responder e construir o futuro agora.

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