Ser farmacêutico: arte e ofício

A autonomia profissional dos farmacêuticos portugueses não é um dado adquirido. A sua preservação, não como privilégio mas como instrumento ao serviço dos cidadãos, é um imperativo ético.

1. A evolução da profissão farmacêutica, até aos nossos dias, foi tudo menos linear. Em Portugal, ao longo de séculos, os boticários garantiram a assistência às populações; contudo, sem formação especializada autónoma e com interferência de vários condicionalismos sociais. Tal não invalidou que se fossem afirmando como ofício mecânico dotado de certa individualidade, em resultado da sua arte na preparação de remédios aprendida com os mestres de botica.

Este longo percurso culminou, no momento em que o ideário liberal chegava a Portugal, com a fundação da Sociedade Farmacêutica Lusitana (SFL), em 1835. Paralelamente, a revolução industrial, as reformas no ensino da Farmácia e o peso político crescente destes profissionais, cujo zénite se atingiu na I República, abriram um novo horizonte: os boticários davam lugar aos farmacêuticos.

Com a chegada do Estado Novo, tal movimento conhece, se não um retrocesso, pelo menos uma estagnação: a SFL dá lugar ao Sindicato Nacional dos Farmacêuticos (SNF, de índole corporativa) e a evolução da autonomia profissional cessa. Restaura-se o dualismo no acesso à profissão, admitindo ao exercício tanto os bacharéis das Escolas Superiores de Coimbra e de Lisboa, como os licenciados da Faculdade de Farmácia do Porto (a única entre 1932 e 1968, e de que celebramos em 2021 o cententário).

Será necessário aguardar pela década de 1960, com o advento da produção maciça de medicamentos industrializados, para que a profissão farmacêutica conheça um novo impulso: ao mesmo tempo que se define a indissociabilidade da propriedade e direcção técnica da farmácia de oficina, exclusivamente para os farmacêuticos (1965) e se consagra a primeira carreira farmacêutica hospitalar e o respectivo internato farmacêutico (1968), retoma-se o caminho da cientificação da farmácia portuguesa. E em 1972, com a evolução do SNF para Ordem dos Farmacêuticos, inicia-se um período de consolidação do farmacêutico como profissional de saúde diferenciado e independente.

2. Muitos e bons serviços foram prestados pelos farmacêuticos ao país, ao longo destas quase cinco décadas. Certamente com falhas e alguns paradoxos, de que talvez o melhor exemplo seja a irrelevância, durante largo período, da produção de medicamentos manipulados, legatária das melhores tradições dos boticários, elemento de diferenciação profissional e instrumento relevante de personalização da terapêutica. Ou ainda a concepção, por parte de alguns, do Regime Jurídico da Farmácia de Oficina, não como instrumento ao serviço da saúde dos cidadãos e salvaguarda da independência dos profissionais, mas antes como elemento legislativo protector de interesses particulares.

E não deixa de ser ainda hoje surpreendente que, apesar de António Arnaut definir as farmácias comunitárias como o braço longo do Serviço Nacional de Saúde (SNS), tenha havido sempre um certo distanciamento da maioria da profissão relativamente ao SNS (recíproco, é justo dizer-se), desde a sua fundação (a quase ausência dos farmacêuticos em Uma Revolução na Saúde, de Raquel Varela, é disso testemunho eloquente).

Não obstante, a grande maioria dos farmacêuticos portugueses sempre teve a consciência de que era responsável por cada acto praticado e pelas suas consequências, dos mais simples aos mais complexos. É por isso com grande preocupação que vemos notícias, num contexto tão adverso como a pandemia covid-19, em que a independência dos farmacêuticos é posta em causa: no caso da inutilização de vacinas no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, em que, ao arrepio da presunção de inocência e da prossecução das necessárias averiguações, se procede a uma condenação pública a priori da farmacêutica responsável; no caso do INEM, em que se concretiza o afastamento de um farmacêutico pela denúncia de alegadas irregularidades no processo de vacinação, cujos contornos são ainda pouco claros.

Quando refiro estes casos, não estou a eludir o necessário apuramento de responsabilidades em ambas as situações: chamo antes a atenção de que a autonomia profissional dos farmacêuticos portugueses não é um dado adquirido; e que a sua preservação, não como privilégio mas como instrumento ao serviço dos cidadãos, é um imperativo ético. Em todas as áreas de actividade da profissão, e independentemente de qual seja a entidade patronal.

Chegamos assim à questão sensível da auto-regulação das profissões. Consideram alguns que se trata de resquício da organização corporativa e obstáculo à plena liberdade dos trabalhadores; outros, que caberia ao Estado assumir a tutela directa sobre o exercício laboral, uniformizando critérios para realidades muitas vezes distintas.

Todavia, parece-me que a auto-regulação foi, ao longo das últimas décadas, o mecanismo que garantiu a profissionais diferenciados exercerem as suas responsabilidades de forma independente e com base em critérios claramente definidos. Certamente que o seu âmbito de actuação poderá ser repensado, em conformidade com os princípios da transparência e da prestação de contas, estabelecendo um novo relacionamento com a sociedade civil.

3. Assim, a profissão farmacêutica chega ao momento actual confrontada com inúmeros desafios. Qual o papel do farmacêutico num contexto de mecanização crescente e de novas plataformas logísticas de distribuição? O seu exercício profissional precisa de ser ressignificado? Qual o papel dos órgãos reguladores da profissão no sentido da valorização do conteúdo funcional a ela adstrito, nomeadamente através do acto farmacêutico? Que modelo de remuneração pretendemos para os serviços prestados pelos farmacêuticos? Como garantir uma assistência farmacêutica com qualidade e equidade para todos? Quais as bases para um novo relacionamento dos farmacêuticos com o SNS, potenciando as suas capacidades?

Talvez seja hora de recuperar a génese da profissão: farmacêuticos como artesãos do século XXI, isto é, profissionais liberais dotados de elevado saber e rigor científico, conscientes da dimensão oficinal do seu trabalho complementarmente à evolução tecnológica, e da sua responsabilidade cívica e ética a diversos níveis; não como fins em si mesmos, mas como instrumentos ao serviço da comunidade – afinal, a nossa missão através dos tempos.

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