Até onde “chega” a questão da Cultura

A fraqueza e ausência de um lugar da Cultura a sério, e a sério levada, é uma das partes substantivas que explicam o esterco político, que é ter aquela coisa abjecta na casa da Democracia.

No rescaldo do acto eleitoral, também eu estou no grupo daqueles – incluindo, neles, os do sector da Cultura – a quem António Costa agradeceu e prometeu não deixar de ouvir nas divergências, mas lhe deram publicamente apoio, não sendo do Partido Socialista. Apesar de ser muitíssimo crítico de muita coisa, e no meu próprio sector, começo por dizer sem ambiguidade: se fosse hoje teria votado da mesma maneira. Mesmo não me incluindo no Partido, mesmo sendo inúmeras vezes penalizado por tutelas da Cultura vindas daí. Mesmo sabendo o que a formação de uma maioria absoluta pode provocar, com um “aparelho” que facilmente tende a trucidar quem se lhe opõe num sentido crítico ou se lhe atravessa no caminho.

Fi-lo com plena consciência cívica; e fi-lo com ela tranquila, mas num tumulto interior quando me lembro, por exemplo, da gafe comprometedora (e esclarecedora) do Primeiro-Ministro ao dizer que Medina salvou “uma geração de artistas”, como se fora de Lisboa a “geração” não existisse! Nem ao menos repartiu esse mérito com a sua própria Ministra, nem os muitos outros autarcas que igualmente o fizeram. Mas, sem esquecer essa ofensa, não me vou arrepender do voto que fiz. As alternativas que tinha eram nulas. De um lado os que por (in)Cultura só vêem o Mercado ou aquele que disse que quando ouvia falar de cultura, rapava do orçamento, triste líder que nem para Chefe de Gabinete do fundador do seu Partido serviria; do outro umas esquerdas igualmente ‘numerificantes’ à maneira ‘protestativa’ de 1% do Orçamento de Estado. Que podia ser 2 ou 5 ou 0,5%, porque se desconhece porquê, para quê, como…

Porém, sei também que acordei num País em que, apesar do bom senso do eleitorado, da derrota clamorosa dos ‘comentaristas de encomenda’, temos uma extrema-direita como terceira força no Parlamento. Mas isso não me assusta tanto pelo facto em si. Aliás, estou convencido de que é bem possível que no acto eleitoral seguinte, por muitas razões, repitam nas urnas o que aconteceu noutro extremo. O que verdadeiramente me preocupa é a natureza da ‘nossa’ (salvo seja!) extrema-direita. Ou, mais ainda, o porquê disso mesmo. Sabemos que todas as extremas-direitas, protofascistas ou neofascistas, se caracterizam pela mentira no meio da meia-verdade, pela xenofobia, sexismo, populismo, pseudo-justicialismo e que todas elas representam grupos do alto capital financeiro, que põem o títere a falar daquilo que elas mais fazem e sabem administrar em proveito próprio: a corrupção.

O que não creio é em que sequer metade daqueles votos representem uma opção fascista ou fascizante. Há muita gente com raiva e, se com justificadas razões, muito mal a direccionam é-o pela mesmíssima razão do que adiante se diz. Gente que se sente marginalizada, esquecida, preterida, traída mesmo, pelas promessas da Democracia por cumprir. Reagem, não agem. E não é só o baixo grau de instrução, que o justifica. Alguns vêm de universidades até. O fenómeno tanto está na romaria, como nas festas de finalistas ou nos comícios políticos. A cedência à ‘pimbalhice’ tem uma leitura que vai do pragmatismo facilitista a algo bem mais grave: a Cultura. Ou melhor: a ausência dela.

Quando alguém tiver a coragem de iniciar um verdadeiro combate para erradicar esse atraso Cultural com que partimos para a Democracia, então sim, acontecimentos como os da importância dada a esse homúnculo, amanhã não terão qualquer expressão. A Cultura é o elemento mais sólido contra as ameaças que vêm da própria boçalidade. Se um Serviço Nacional de Saúde e uma pronta e racional acção contra a pandemia terão salvo centenas ou milhares de vidas através do Serviço Nacional de Saúde, priorizar um Serviço Nacional de Cultura salvará milhares, se não milhões de portugueses de amanhã dessa boçalidade endémica e que quase meio século depois do 25 de Abril está por erradicar. Mais do que por palavras de ocasião ou protecção de pequeninos grupos dos de sempre no sector, apenas mudando geracionalmente, o que se exige é uma mão-cheia de acções que ajudem a erguer esse Serviço Nacional de Cultura. Que seja sustentado e sustentável, estruturante e estruturado, programático e não de simpatia, causa importante e não residual, nacional e não tão centrado na capital e arredores, continuado e não casual, perspectivado e não à deriva; politicamente assumido e não sacudido para a burocracia. E se isso, é verdade, não se faz com o ridículo orçamento que tem tido, tão ou mais importante é o rumo que, na pluralidade estética, a impulsione com uma finalidade e etapas.

Pode não parecer, mas esta fraqueza e ausência de um lugar da Cultura a sério, e a sério levada, é uma das partes substantivas que explicam o esterco político, que é ter aquela coisa abjecta na casa da Democracia: não tanto, ou não só, por si só, mas pela já referida boçalidade em que se deixou e deixa mergulhado Portugal. Pode não parecer, mas é mesmo essa uma das raízes a que tal atitude conduz e aqui chega.

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