Políticos portugueses e língua portuguesa: uma relação difícil

Vi är på en fest som inte älskar oss [Estamos numa festa que não gosta de nós]. Tomas Tranströmer (poeta e tradutor sueco, 1931-2015)

A projecção internacional da língua portuguesa, não sendo um preceito linguístico, é um conceito político, consagrado e propagado nestes exactos termos por figuras que ocupam ou ocuparam cargos políticos de proa, como Aníbal Cavaco Silva, António Sampaio da Nóvoa, Augusto Santos Silva, Berta Nunes ou Francisco Ribeiro Telles. Portugal tem uma política de língua e a projecção internacional da língua portuguesa é materializada através de estruturas sólidas, como o Camões, I.P. (sob alçada do Ministério dos Negócios Estrangeiros), da adesão a instâncias internacionais com a língua portuguesa no nome (a famigerada CPLP, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), da presença de políticos portugueses em eventos relacionados com a língua (por exemplo, Marcelo Rebelo de Sousa esteve recentemente na reinauguração do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo), da promoção, sob os auspícios da Organização das Nações Unidas (ONU), do Dia Mundial da Língua Portuguesa (festejado em 5 de Maio) e também de diversas outras iniciativas: umas louváveis, como a tentativa de tornar a língua portuguesa língua oficial da ONU, outras nem por isso, como o inenarrável Acordo Ortográfico de 1990 (AO90).

Portugal não está sozinho nesta senda. França é outro exemplo de país com uma política de língua. Há uns meses, o Politico sussurrava-nos uma instrução do presidente francês, Emmanuel Macron: “Notes, minutes, letters and meetings will be ‘French-first’ when France takes over European Council’s presidency”. Ou seja, notas, actas, cartas e reuniões primordialmente em francês, durante a presidência francesa em exercício do Conselho da União Europeia, durante o primeiro semestre deste ano. Exemplos diferentes do de Portugal e de França, isto é, exemplos de países sem política internacional explícita de língua, são a Suécia e a Dinamarca. Mas já lá vamos.

Recentemente, Marcelo Rebelo de Sousa salientou que “também as organizações internacionais [...] têm um papel muito importante a desempenhar, porque permitem, nos círculos de emigração e para além deles, que a nossa língua (nossa de todos os falantes, independentemente da sua nacionalidade) continue viva e em expansão”. Contudo, há quem não pense assim.

O conceito “organizações internacionais”, referido pelo actual Presidente da República, não é nem distante, nem abstracto. Entre as organizações internacionais de que Portugal faz parte, encontra-se, por exemplo, a União Europeia (UE). A UE é uma organização internacional composta por instituições e três delas, a Comissão Europeia, o Conselho de Ministros e o Parlamento Europeu, são constituídas, na parte visível da sua actividade, por políticos. O conceito multilinguismo é crucial para a UE e, por exemplo, o artigo 167.º, 2, do Regimento do Parlamento Europeu consagra-o, determinando: “Os deputados têm o direito de usar da palavra no Parlamento na língua oficial da sua escolha. As intervenções numa das línguas oficiais são interpretadas em simultâneo para cada uma das outras línguas oficiais, bem como para qualquer outra língua que a Mesa entenda necessária”.

Isto significa, em teoria, que um eurodeputado sueco pode falar dinamarquês, um eurodeputado dinamarquês pode falar português e um eurodeputado português pode falar sueco. Todavia, tendo Portugal uma política de língua, o eurodeputado português, apesar de poder, não deve falar nem dinamarquês, nem sueco, nem inglês, nem esloveno. O eurodeputado português, neste caso, mas também o ministro português, o primeiro-ministro português, etc. devem falar português. Não porque eu ache que sim, mas porque certamente a projecção internacional da língua portuguesa é um assunto sério e não meramente nem conversa para boi dormir, nem coisa para inglês ver.

Em meados de Agosto de 2015, num artigo intitulado A pseudodefesa do português (PÚBLICO, 18/08/2015), Paulo Rangel desferiu um feroz ataque à projecção internacional da língua portuguesa, pondo em causa a recente instrução de Marcelo Rebelo de Sousa. Apesar da possibilidade de um eurodeputado português ter a sua intervenção em português interpretada em simultâneo para cada uma das outras 23 línguas oficiais da UE, no entender de Rangel, os políticos suecos e dinamarqueses “defendem melhor os interesses dos seus povos fazendo-se entender perfeitamente [em inglês] do que passando por interpretações simultâneas directas ou até consecutivas”. E este argumento, apresentado, segundo o eurodeputado português, pela “maioria” dos políticos suecos e dinamarqueses, é, alegadamente, “autêntico”.

Esta autenticidade do argumento escandinavo (Rangel acrescenta a Noruega ao rol) é altamente discutível. Rangel exuma do debate sobre o regime das patentes o conceito de “língua franca”. Convém recordar que as várias línguas francas faladas ao longo da história da humanidade aproveitaram sempre mais a quem as falava como língua materna do que a quem as falava como língua estrangeira. E isso hoje não é excepção. Só nos fazemos “entender perfeitamente” na nossa língua. Além disso, só se adopta uma língua franca quando não há condições para cada um falar a sua língua materna. E a UE criou essas condições. E é justamente para evitar o desequilíbrio produzido pela língua franca que há interpretação e tradução nas 24 línguas da UE.

Em suma, se os políticos portugueses quiserem falar em estrangeiro durante o exercício de funções, têm bom remédio: façam-no à porta fechada ou dediquem-se a outra actividade. Efectivamente, se ainda hoje em dia os não-falantes de português acham que o Guterres de António Guterres, actual secretário-geral da ONU, é Gutierrez e crêem que o José quer de José Manuel Durão Barroso, antigo presidente da Comissão Europeia, quer do treinador de futebol José Mourinho é pronunciado à espanhola, a culpa, garanto-vos, não é nem minha, nem vossa. A culpa é de quem tem responsabilidades em organizações internacionais, mas se abstém de comunicar em português.

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