A pátria

Pátria não é o lugar onde uns senhores governam. Pátria é onde o nosso coração se governa e a nossa cabeça se desgoverna. Qualquer um pode reclamar a sua pátria. Sei da minha.

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"O nosso campeonato ainda é com os da nossa espécie, esses mesmos que nos desiludem e nos ferem até ao osso" Mag Rodrigues

A amizade é difícil, inconstante e quase tão pouco segura como o amor. Muitas vezes saímos em defesa dos nossos amigos sem nos lembrarmos de como custou chegar aí: até termos a certeza de que são esses: caninos — como se banalizou dizer.

Muitos de nós dirão que confiam mais nos animais e eu percebo, mas o nosso campeonato ainda é com os da nossa espécie, esses mesmos que nos desiludem e nos ferem até ao osso.

Há muito tempo, muito mesmo, tive uma amiga com quem me divertia na troca de cumplicidades. Duas amigas trocando dores e feridas que não se curavam do dia para a noite, mas se há coisa que cabe aos amigos é esse poder de transformar uma dor que parece infinita numa enxaqueca ocasional que vai ter fim, e, melhor, remédio. Muitas vezes voltei para casa (ou não saí daqui) percebendo que resolvera a minha dor numa conversa terapêutica com os amigos - com aqueles que não querem de nós nada a não ser que triunfemos no amor, com saúde e beleza. Aos amigos agora os compêndios da auto-ajuda também chamam “tóxicos”. Eu percebo: é simplesmente distinguir o amor e a lealdade, do aproveitamento e de uma certa miséria humana que nos visita por vezes.

A amiga, essa distante, que me acompanhava em muitos momentos, revelou-se uma surpresa que guardo até hoje. Guardo-a sem qualquer rancor ou memória infeliz. Apenas me sirvo dela hoje como exemplo daquilo que nunca mais quis na vida: alguém que sabendo da nossa proximidade, fragilidade e até entrega de vulnerabilidades avulsas, se aproveita do momento para me fintar, tirar o tapete e magoar num piscar de olhos sem nos darmos conta. Uma fisga que foi directa ao coração e me apanhou em cheio.

Não é que somos crianças apanhadas desprevenidas para sempre?

A amiga acabou por querer algo que eu pensava ter meu. Que idiotice! Nós nunca temos ninguém seguro, já o disse. Nem os filhos.

A amiga um dia seguiu em frente com alguém que aparentemente me tinha sido especial mas que afinal representava apenas um passageiro do meu tempo. Os amigos e namorados são isso mesmo: passageiros do nosso tempo. Deixamo-los entrar e eles saem quando entendem. Ou quando nós entendemos. Temos que aprender a flexibilizar o coração ou o cérebro ou o sítio onde se aloja a dor para lhes dar lugar às fugas. Há um Exit para cada um deles que temos de deixar em aberto. Nós, tão agarrados à posse desde sempre, não fomos educados para esse desapego. É tramado esse desapego porque sem ele também é como se não soubéssemos qual é a nossa pátria. Pátria não é o lugar onde uns senhores governam. Pátria é onde o nosso coração se governa e a nossa cabeça se desgoverna. Qualquer um pode reclamar a sua pátria. Sei da minha. Sim, voltemos ao “canina”. Sou canina em relação a esse lugar por mim governado.

A amiga? Eu já era crescida e aparentemente imune à dor (achamos isto em idade adulta e nunca paramos de nos surpreender) mas sofri muito. Não propriamente por ter perdido um simulacro de relação, mas por ter visto uma alegada amiga a ir nessa embarcação: a da vertigem de querer o que os outros têm. Vai acontecer-nos muitas vezes pela vida fora, a não ser que alguém nos avise: vamos querer o que os outros têm. E se os outros têm, também pode ser nosso.

Essa amiga salvou-me de males maiores: por causa da desconfiança e da descrença que habilmente me soube instalar, eu nunca mais quis que ninguém perto de mim passasse pelo mesmo.

O amor não é uma coisa incontrolável: o amor é um consentimento de dois corações que olhando em redor decidem ficar juntos. Ninguém se atira de uma ponte se não ficarmos com o namorado da amiga ou a mulher do amigo.

Há milhões de pessoas à nossa volta que ainda não conhecemos e que podem ser o nosso par, e não se tornam especialmente apetecíveis porque namoram alguém de quem somos próximos.

A vida ensinou-me a respeitar a pátria de cada um.

Esse território nunca o atravessarei de forma desleal.

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