Manuel Hemingway Alegre e as novas bruxas de Salém

A confederação dos agricultores, o que resta da democracia cristã e Manuel Alegre apostam em dar do PAN a ideia de que é um grupo de tias urbanas tresloucadas, que chamam a GNR quando, deambulando à noite pela província, vêem vacas ao frio.

Manuel Alegre, nascido em 1936, é um dos mais consagrados poetas da resistência antifascista e uma das personalidades históricas do socialismo democrático e plural. Também eu o respeito por essas razões. Em 2006 foi candidato “independente” à Presidência da República e perdeu, mas obteve quase 21% dos votos (1.127.472, bem à frente de Mário Soares, Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã). Nunca desistiu de ser uma voz ponderosa da “consciência socialista”.

Agora, a meio de Janeiro de 2022, insurgiu-se ao ouvir o primeiro-ministro do PS dizer, na campanha para as legislativas antecipadas, que, falhada a “geringonça” que lhe permitiu governar seis anos com o apoio das outras esquerdas parlamentares, poderá ter de contar com os eleitos do PAN (Partido das Pessoas, Animais e Natureza) para alcançar uma nova maioria, mesmo se exígua. Ora, o PAN distinguiu-se como defensor dos direitos dos animais (o que lhe valeu o epíteto de “animalista radical”), combatendo, por exemplo, a tauromaquia, repetindo que não é “de direita nem de esquerda” e que apoiará qualquer governo que satisfaça as suas exigências. Alegre respondeu num artigo intitulado “Voto PS, não voto PAN” (PÚBLICO, 18/01), que me fez pensar em Hemingway, também ele, no seu tempo, antifascista – o celebrado autor de Por quem os sinos dobram –, grande amador de caça grossa e de grande pesca desportiva, entusiasta dos touros de morte e íntimo de famosos matadores. Sem insistir na “liberdade para gostar de touradas” (que defendeu várias vezes), escreveu agora Alegre:

“…Não compreendo como é possível o PS colocar-se na eventual dependência do PAN, partido que subverte o primado da pessoa humana e os fundamentos humanistas da nossa sociedade. Se tal acontecesse, votar PS seria como votar contra mim mesmo, contra o que gosto de fazer, como caçar e pescar, algo que faz parte de uma cultura de vida e de relação com a natureza. (...) Certas opções do PAN, pelo seu excesso, atingem a coesão cultural, territorial e social do país, (...) hostilizando (...) o mundo rural. (...) Quem vota no PS não o faz para que dois ou três deputados acabem com a pecuária, a caça e a pesca desportiva e outros seculares costumes e tradições do povo português.”

O artigo de Alegre foi publicado quando a confederação dos agricultores, sucedânea dos grémios da lavoura de 1937 e tradicionalmente alinhada com a direita, apelava à rejeição do voto no PS e em todos os partidos que possam coligar-se com o PAN, que visa “a destruição da agricultura e a aniquilação do mundo rural”. Na mesma cruzada embarcou o que resta da democracia cristã. A direita mais conservadora começou a encarar o PAN como a bête noire da democracia representativa, um pequeno partido que poderá condicionar toda a política do governo, como fizeram comunistas e bloquistas na “geringonça”.

A rejeição dos “excessos do animalismo” subiu, assim, ao palco principal da pugna eleitoral. Mas Alegre foi mais longe, dizendo que o PAN ataca “o primado da pessoa humana e os fundamentos humanistas da sociedade” e ameaça “a coesão cultural, territorial e social do país”, desprezando “seculares costumes e tradições”. De uma pazada, esta “voz da consciência socialista” invocou (sem o citar) o personalismo de Emmanuel Mounier, a herança renascentista, os usos e costumes supostamente imutáveis e ainda a liberdade dos gostos individuais, contra os defensores dos animais. A confederação dos agricultores, o que resta da democracia cristã e Manuel Alegre apostam em dar do PAN a ideia de que é um grupo de tias urbanas tresloucadas, que chamam a GNR quando, deambulando à noite pela província, vêem vacas ao frio.

Mas como pode a defesa dos animais significar que se renunciou ao “primado da pessoa humana e aos fundamentos humanistas da sociedade”? Será a luta contra os aviários, contra a produção massiva de gado suíno e bovino para consumo, contra o transporte desumano de animais para abate, contra a redução do peso das carnes na dieta alimentar dos países ricos, contra os maus-tratos de touros em arenas, contra os combates de galos e de cães para divertimento humano, ou contra o abandono impune de animais domésticos, um sintoma de “perda de liberdade” do animal humano? Pelo contrário, o humanismo contemporâneo subiu vários patamares no respeito pela vida animal e vegetal e pela natureza.

Só quem não quer não sabe: a pecuária intensiva é uma das grandes emissoras de gases com efeito de estufa, co-responsável pelo aquecimento global e inimiga da descarbonização das economias – sendo esta tão urgente no combate às alterações climáticas. Eternizar moratórias para preservar “tradições e costumes” é tão insustentável quanto adiar a substituição das energias fósseis nas indústrias. O PAN não será o meu partido de eleição (admito que tenho um, pelo menos para defesa do mal menor, nas idas às urnas). Mas é-me impossível não concordar com ele quando diz que não se podem oferecer mais bulas e moratórias quando está em causa a habitabilidade do planeta pela espécie humana – e por muitas outras. Não estamos no Massachusetts de finais do séc. XVII, e melhor seria se não inventássemos, absortos na catarse eleitoral, novas bruxas de Salém.

No momento em que escrevo, estamos a 12 dias de saber quem ganha e quem perde as eleições para cujas cordas fomos acossados pelo chumbo parlamentar (na generalidade!) do Orçamento do Estado para 2022. Mas, para além dos resultados eleitorais, parece adequado às momentosas prudências políticas que o PAN se junte às forças que com ele partilham a luta por uma economia mais “verde”, como propôs o representante de outro pequeno partido, o Livre, que ainda nem sabe se alcançará assento parlamentar. PAN, Livre e PEV (este ainda umbilicalmente dependente do PCP), e talvez, quem sabe, o Bloco, ganhariam em criar uma plataforma ecologista – o homem do Livre chamou-lhe “ecogeringonça” – que garantisse mais aguerrida defesa de políticas amigas das populações, do “ambiente”, das regiões do país e... dos animais. De quantos deputados estaríamos, neste caso, a falar? De uma dúzia ou mais deles? Por estranho que pareça, tal força transversal poderá revelar-se, ainda hoje, quimérica. Mas ninguém ousará pensar que essa plataforma seria voltar ao tempo do solitário localista do queijo limiano, de quem dependeram dois (!) orçamentos do XIV Governo Constitucional.

Sugerir correcção
Ler 4 comentários