Número de deputados por quilómetro quadrado

O próprio sistema representativo foi torpedeado pela crise demográfica que atravessamos, sendo que acredito seriamente ser este um dos reais factores que explicam a verdadeira dificuldade de colocar na agenda política alguns dos problemas do interior.

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Nuno Ferreira Santos

Portugal é um país com claras assimetrias entre o seu litoral e o seu interior, e visto que estamos em início de campanha eleitoral, e numa altura em que se retoma a discussão sobre a regionalização, julgo importante analisar o actual sistema eleitoral e a dificuldade de através deste modelo se conseguir representar devidamente todas as suas “regiões”.

Pode-se consultar no Mapa Oficial n.º 1-C/2021, publicado em Diário da República, no dia 6 de Dezembro de 2021, o número de deputados a eleger para a Assembleia da República e a sua distribuição pelos círculos eleitorais, sendo que neste documento existe quer a indicação do número de deputados, quer do número de eleitores respectivo por cada círculo eleitoral.

Ou seja, enquanto no distrito de Lisboa existem 1.920.128 eleitores, e 48 deputados, existem em Portalegre somente 94.393 eleitores e dois deputados. Analisando os números, vemos que existem cerca de 40.003 eleitores por cada deputado de Lisboa, e 47.197 eleitores por cada deputado de Portalegre. O mesmo cálculo indica que temos aproximadamente 42.625 eleitores por cada deputado de Vila Real, 40.301 eleitores por cada deputado de Beja ou 39.819 eleitores por cada deputado do Porto.

No total, o número de eleitores portugueses é de 10.821.244, o que dividido pelo total de 230 deputados, indica uma proporção de aproximadamente 47.049 eleitores por cada deputado. No entanto, se atendermos antes ao número de deputados por área (em quilómetro quadrado) de cada círculo eleitoral, vemos uma clara diferença.

Utilizando os mesmos distritos do exemplo de cima, o distrito de Lisboa tem 2.761 quilómetros quadrados, enquanto o distrito de Portalegre tem 6.065 quilómetros quadrados. Se dividirmos o número de quilómetros quadrados por cada deputado eleito por esse distrito, vemos que no caso de Lisboa a proporção é de aproximadamente 58 quilómetros quadrados por deputado, enquanto no caso de Portalegre a proporção é de aproximadamente 3.033 quilómetros quadrados. Ou seja, um deputado de Portalegre representa uma área territorial superior à área territorial somada de todos os 48 deputados lisboetas.

O mesmo cálculo mostra que temos cerca de aproximadamente 866 quilómetros quadrados por cada deputado de Vila Real, ou cerca de 3.408 quilómetros quadrados por cada deputado de Beja, ou aproximadamente 60 quilómetros quadrados por cada deputado do Porto. Atente-se ainda ao facto de que o Porto possui um total de cerca de 2.395 quilómetros quadrados, o que leva facilmente a concluir que um só deputado de Beja representa uma área bem superior à do distrito do Porto.

Fazendo agora as contas ao panorama geral nacional, para uma área total do território português correspondente a aproximadamente 92.078 quilómetros quadrados, temos uma proporção de cerca de 400 quilómetros quadrados por cada deputado. Esta comparação entre valores permite-nos concluir facilmente o seguinte: enquanto no caso da proporção de eleitores e deputados os números não são assim tão diferentes entre si, no segundo exemplo as diferenças são estrondosas.

Como é óbvio, o terreno em si não é passível de ser representado nem de eleger, pois montes e vales não votam, porém, o sistema representativo actual, ao fazer pender (e bem) a representação pelo número de eleitores, é ele próprio vítima do processo de concentração populacional nos dois pólos urbanos (Lisboa e Porto) e do despovoamento do restante interior, o que faz com que os deputados eleitos nas outras regiões o sejam em muito menor número, o que leva a que a “representatividade” dos territórios, em última análise, saia a perder.

Ou seja, o próprio sistema representativo foi torpedeado pela crise demográfica que atravessamos, sendo que acredito seriamente ser este um dos reais factores que explicam a verdadeira dificuldade de colocar na agenda política alguns dos problemas do interior.

Concluo apenas com uma nota de esperança: num país com uma tão elevada homogeneidade social e cultural, creio ser possível existirem bases suficientes de acordo para se alcançar uma solução que garanta quer a representatividade da população no seu todo, quer do território no seu todo, de modo mais uniforme.

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