Autoridade e liberdade – O dilema por enfrentar face à crise climática

Pensar que as sociedades humanas podem ser guiadas só pela ciência e pela razão é uma ilusão. A história recente mostra que não se consegue assim lutar contra os apelos ao ódio e ao medo

Estamos confinados na Terra; não há planeta B. Para manter o aquecimento global abaixo dos 2 graus, os governos teriam de intervir nas decisões das empresas e dos cidadãos. De facto, este objetivo requer alterações drásticas da produção mas também dos modos de vida (menos viagens, roupa, carne, gadgets digitais, água…).

Setenta por cento das maiores empresas não pagam taxa carbono e nos Estados Unidos os 5% mais ricos geram 32% das emissões de CO2. Com que autoridade vão os governos agir sobre as escolhas individuais? Ou alguém ainda acredita que regular mercados, disponibilizar fundos para investimentos verdes e esperar pela sobriedade dos consumidores vai resolver o problema, sem que se tenha de fazer investimentos públicos colossais, destruir e substituir milhares de empregos e implementar projetos aos níveis regional, nacional e europeu? Quando algo tem de ser organizado, como é o caso da transição ecológica, é necessário autoridade.

O exercício da autoridade implica, neste caso, que empresas e cidadãos aceitem obedecer, ou seja, aceitem abdicar da sua liberdade de ação. Ora, os liberais afirmam que o progresso consiste em desfrutar de cada vez mais liberdade; qualquer entrave nesse caminho representa um retrocesso civilizacional. Quanto aos conservadores, lamentam a dissolução de todas as formas de autoridade nas sociedades modernas. Hannah Arendt mostrou, em Eichmann em Jerusalém, como obedecer pode servir para banalizar o mal, e sempre proclamou que a autonomia moral não é só um direito, é um dever absoluto. Mas a mesma Arendt denuncia a confusão que se estabeleceu entre autoridade e autoritarismo, confusão que tem mergulhado as sociedades numa crise de autoridade profunda. A realidade, dizia ela, é que se assistia ao declínio tanto da liberdade como da autoridade.

Como impor as restrições necessárias para evitar o colapso ambiental? E para diminuir as desigualdades, condição indispensável à transição ecológica? O desafio lançado por Xi Jinping ao Ociente, a sua verdadeira provocação, é afirmar que a China dominará o mundo graças ao seu regime autoritário, regime melhor do que as democracias ocidentais. (Note-se que a China já é líder mundial nas energias renováveis e no transporte ferroviário.) Será por isso que Biden organizou a Cimeira pela Democracia? Parece-me mais sensato enfrentar o dilema e deixar de considerar a autoridade como sempre um mal.

Autoridade, poder e liberdade

Os romanos inventaram o conceito de auctoritas (de augere, aumentar) que distinguiram de potestas, poder, distinção que se foi desvanecendo. Contrariamente aos detentores de poder, os que exercem autoridade não usam meios de coerção porque a autoridade é voluntariamente aceite. Também não recorrem à persuasão, que pressupõe uma relação entre iguais, porque a relação de autoridade é hierárquica. Arendt associa a perda da autoridade à “perda da base do mundo”, ao desaparecimento de um mundo comum. Não há autoridade sem fundações – tradição, religião, valores comuns. A minha proposta é que preservar o ecossistema pode e deve ser constituído como “mundo comum” – o que na realidade é.

A função da autoridade é precisamente a de zelar pelo interesse comum, que consiste hoje em manter a possibilidade da vida na Terra; mais exatamente, em deixar aos nossos filhos a possibilidade de viverem sem estarem sujeitos a condições naturais mortíferas. Ao exercício da autoridade está sempre associado uma responsabilidade moral, é isso que legitima a autoridade e que faz com que obedecer se possa tornar um dever, também moral. O Ocidente tem de assumir essa dimensão moral. Pensar que as sociedades humanas podem ser guiadas só pela ciência e pela razão é uma ilusão. A história recente mostra que não se consegue assim lutar contra os apelos ao ódio e ao medo. É importante reconhecer que existe um continuum entre autoridade e autonomia, e que qualquer escolha nesse continuum tem uma dimensão moral.

Não se pode ignorar que existem conflitos entre os interesses individuais e o interesse comum. Mesmo os que querem preservar o bem comum não se comportam sempre em conformidade. A autoridade serve para isso: para instituir obrigações que ajudem a proteger os que não são protegidos espontaneamente. Neste caso, os jovens, as gerações futuras. Arendt criticou as formas de individualismo que presumem que a liberdade é sempre e unicamente uma questão de liberdade pessoal: “a liberdade não reside em mim ou em ti; ela só pode acontecer como relação entre nós”. A liberdade acontece quando fazemos algo juntos, quando fazemos ou refazemos o mundo conjuntamente. “Não temos mundo um sem o outro”. Não teremos mundo se não fizermos alterações radicais nos próximos vinte anos. Somos obrigados a viver juntos, e viver juntos acarreta obrigações que nos ligam uns aos outros, obrigações éticas e morais.

Autoridade e democracia

Se advogo a autoridade, é porque esta, contrariamente ao autoritarismo, é compatível com a democracia. Não enfrentar a necessidade de autoridade e questionar as condições para a sua legitimidade paralisa a ação e fragiliza a democracia. Quais as instâncias que têm legitimidade para definir os objetivos coletivos? A que nível – europeu, nacional, regional? Quais as condições de legitimação das medidas tomadas para atingir os objectivos fixados? As tendências anarquistas/libertárias estão na moda à esquerda como à direita. São soluções de facilidade para os dois lados: acreditar em coletivos que se auto-organizam ou na auto-organização pelos mercados. Estas construções intelectuais estão cada vez mais longe, quer das práticas de muitos governos, quer da experiência dos cidadãos, dos problemas que enfrentam quotidianamente e em cuja resolução acreditam cada dia menos. Deixou de ser possível acreditar em harmonias espontâneas, em processos de auto-regulação social. Vão ser necessárias muitas leis, regulações, transformações institucionais, obrigações e imposições de várias ordens.

O problema é que a democracia é a ditadura do curto prazo: corre-se o risco de a geração presente, e os ciclos eleitorais, prejudicarem as gerações futuras. As democracias políticas ocidentais não souberam impor-se aos poderes económicos, do qual ficaram reféns. Conseguir a transição ecológica exige, todavia, que os estados se imponham aos gigantes económicos. Exige também um aprofundamento da democracia económica, especificamente, que os trabalhadores participem nos órgãos de governo e nas decisões das empresas. Essa participação representa uma oportunidade privilegiada para que os trabalhadores tomem consciência dos custos ecológicos dos produtos que consomem.

A questão da autoridade é extraordinariamente difícil, delicada e escorregadia. É por isso premente chamar as coisas pelo nome. Não distinguir claramente autoridade de autoritarismo está a condenar-nos à inação. É necessário enfrentar a nossa condição terrestre. “La maison brûle” e só há uma casa, comum. Foi também essa a mensagem do Papa Francisco quando colocou a estátua Homeless Jesus perto do Vaticano: estamos a ficar sem casa.

Foto
Uma das cópias de Homeless Jesus, em Liverpool, Reino Unido By Phil Nash, from Wikimedia Commons
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