Doenças mentais crónicas: não haverá desestigmatização sem participação

Se acreditamos na Medicina, porque não acreditamos que há muitos doentes perfeitamente capazes de participar na planificação do que há a fazer?

O Governo vai criar um novo órgão dedicado à saúde mental usando verbas do Plano de Recuperação e Resiliência e tem até ao final do mês de Janeiro para nomear quem dele fará parte.

Temos falado muito de saúde mental, talvez de forma pouco profunda porque é difícil falar de um assunto que engloba tudo. Quando factores sociais nos tornam doentes, dizemos que estamos doentes, ou dizem-nos que estamos doentes, e não dizemos que a sociedade está doente. Um exemplo simples: existem cada vez mais raparigas, quase crianças, a sofrer de anorexia, doença que pode matar, mas é-nos mais simples isolar os casos e tentar tratá-los - o que tem que ser feito, óbvio - do que discutirmos a sério os motivos que fizeram com que essas raparigas adoecessem. Parece-nos um trabalho demasiado quimérico e não o fazemos. Como se soubéssemos de envenenamentos causados pela água de uma fonte, e fizéssemos lavagens ao estômago em vez de resolver o problema da fonte. No tempo da troika muitos portugueses deprimiram-se, e os psiquiatras tinham que os tratar, mas sabiam que o que os curaria verdadeiramente seria voltarem a ter trabalho, ou conseguirem pagar as suas dívidas.

Quando a sociedade está doente, se classificarmos as vítimas como doentes, pomo-las na prateleira dos doentes e não temos que tratar da sociedade, e os doentes funcionam como um álibi para fazer parecer que a sociedade funciona, e é até solidária.

É importante que se discuta a saúde mental, como agora tanto se discute, mas está a acontecer uma coisa preocupante: as pessoas com doenças mentais crónicas ou não são mencionadas ou são uma nota de rodapé. Porquê? Talvez porque, enquanto grupo, ainda não saibamos exactamente o que isso é, e mete medo, e não serve para álibi de nada. E, sobretudo, porque as pessoas que vivem com doença mental crónica são silenciosas, nada reivindicam, mas existem e em Portugal são muitos milhares, têm direitos e têm que os reivindicar.

Não duvido, sinceramente, da vontade, da capacidade de trabalho das pessoas que têm estado à frente dos organismos que se ocupam da saúde e doenças mentais neste país, mas há uma urgência que tem faltado, um murro na mesa que ainda não foi dado. As doenças mentais crónicas, não tratadas ou mal tratadas, matam, destroem vidas, as vidas dos próprios, dos familiares. Há velhos com doenças mentais crónicas, crianças, pessoas de todas as idades. Há doentes no mais profundo isolamento. Há doentes no mais profundo desespero. Há muitas doenças que se desenvolvem associadas às doenças mentais não tratadas, e há muitos suicídios.

É muito importante que os doentes façam parte da solução e tenham uma palavra a dizer, porque daí virá a urgência, o murro na mesa que tanto falta. Em vários países isso já acontece. Se acreditamos na Medicina, porque não acreditamos que há muitos doentes perfeitamente capazes de participar na planificação do que há a fazer?

Saberão as pessoas que vão a consultas psiquiátricas no privado que as consultas no SNS podem ter a duração de apenas dez minutos? Saberão as pessoas que a quase totalidade das pessoas com doença bipolar só procuram, pela primeira vez, os médicos quando estão deprimidos? Saberão que é um perigo receitar a um doente bipolar um antidepressivo? E em consultas tão curtas, quantos diagnósticos feitos não terão sido errados?

Por razões várias, a doença que conheço melhor é a do distúrbio bipolar, e também eu, até há pouco tempo, pensava que seria quase impossível uma pessoa com esquizofrenia ter um bom trabalho, uma boa vida. Mas era minha ignorância porque pode, e pode muito bem. Pode numa sociedade franca e solidária, e com tratamento.

É preciso reivindicar muitas coisas, horários de trabalho flexíveis, por exemplo. Um banco de horas ao contrário, em que o trabalhador fique a dever horas que repõe quando se sentir melhor. Incentivos para os empregadores que dêem trabalho a pessoas que precisam desses horários diferentes. As pessoas com doença mental crónica precisam de estabilidade mais do que tudo, e mais do que todos. Ser despedido pode ser a porta escancarada para o suicídio.

Ainda se lembram quando se dizia “aquele tipo é mesmo um mongolóide”? Já não estamos aí, já não dizemos essas frases vergonhosas. Não dizemos porque os familiares, e as pessoas com Síndrome de Down, fizeram o grande trabalho de se mostrarem ao mundo de cabeça levantada, e de dizer que não admitiam mais maus tratos e desconsiderações.

Os insultos utilizando a esquizofrenia e a doença bipolar ainda são “o pão nosso de cada dia”, mas não vão desaparecer por decreto, desaparecerão quando as pessoas com estas doenças tiverem poder, como têm já em outros países, como é normal os doentes com outras doenças terem quando o assunto tratado lhes diz respeito.

Dou dois exemplos de duas mulheres extraordinárias:

Elyn Saks, com esquizofrenia, é, entre muitas coisas, professora de Direito, Psicologia, Psiquiatria e de Ciências Comportamentais na University of Southern California Gould School of Law. Fundadora do Saks Institute for Mental Health Law, Policy, and Ethics, foi convidada pelo governo de Obama para ser membro do Center for Mental Health Services National Advisory Council. É autora de vários livros, um, autobiográfico, de uma importância capital: The center cannot hold. Infelizmente não está traduzido em português.

Kay Redfield Jamison, com doença bipolar, tem como Saks um CV de infinitas páginas, mas para que me percebam digo simplesmente que é co-directora do Mood Disorders Center no Johns Hopkins Hospital, um dos hospitais mais conceituados do mundo. É também professora na Johns Hopkins University. É autora de dezenas de livros.

As duas estiveram internadas em hospitais psiquiátricos várias vezes, encontram-se estáveis há já bastantes anos.

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