As palavras que faltaram

Às vezes precisamos de crescer para saber usar as palavras em vez do silêncio. As palavras tornam-se difíceis quando temos de as escolher adequadamente enquanto o silêncio é uma forma preguiçosa de dispensar os outros.

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"A dor que os outros nos infligem quando nos dispensam mudos dificilmente será esquecida" Mag Rodrigues

Foi uma espécie de promessa falar deste silêncio que cai sobre nós sem o compreendermos muito bem: quando começou, de onde veio, por que razão aconteceu no meio de coisas tão boas?

Acontece vezes sem conta na amizade: um de nós fica ferido, julga-se ferido de morte e vira costas a tudo o que foi erguido durante meses, anos, às vezes décadas. Nos amigos, penso eu, é mais fácil reverter a situação: vamos ao encontro deles e eles ao nosso e rimos das asneiras mútuas. Reatamos aos poucos a emoção de estarmos outra vez juntos. Queremos voltar ao que éramos: voltamos muitas vezes.

Já no amor, a conversa é outra.

Prometi à minha filha falar disto como quem fala de uma amizade subitamente perdida. Bruscamente neste presente. Porquê? A idade dos porquês, afinal, repete-se vida fora.

Na amizade dói muito, no amor dói muito mais.

Estávamos à mesa quando lhe falei das coisas por que já passei. Agora que os 50 anos chegaram e já os posso ver como se fossem um marco ou até uma espécie de pódio, também tenho a capacidade de parodiar aquilo que foi mágoa. Um amarfanhar de ego e coração e tudo o que cabe na capacidade infinita (parece-me infinita) de sentir.

Qualquer idade é falível, ridícula, estupidamente frágil. Em qualquer idade a falta de respostas é incompreensível. Por mais que a vida se prolongue.

Eu não estava muito longe do que sou agora quando alguém (que parecia gostar desalmadamente de mim) me deixou em silêncio. Esses dias, os que pressentem no ar que algo aconteceu, são os que precedem a guilhotina: já sabemos que vai acontecer. Há no entanto ali uma esperança de que algo se reverta a nosso favor sabendo que o veredicto raras vezes nos vai favorecer. No amor raras vezes há misericórdia: farejamos a tragédia quando ela está prestes a declarar-se mas ainda não foi pronunciada. Às vezes nunca será.

Das piores sensações que tenho na vida, e essas nunca se apagarão, são das pessoas que nos cortejaram para depois nos abandonar em silêncio. Deixam-nos com uma mensagem em suspenso que depois arrastará a nossa humilhação, a nossa degradação, a nossa auto comiseração.

Esvaímo-nos em perguntas querendo saber o que fizemos de errado, o que temos de anómalo, se somos ou fomos inadequados. E nunca virá do outro uma resposta. Sabem porquê? Falta coragem. E falta-nos a todos em algum momento.

Tinha prometido à minha filha esta crónica que já tinha sido uma conversa à mesa: O que passamos a ser para os outros quando nos tornamos campo de aversão ou de incompreensão?

O outro, que às vezes somos nós, tem a capacidade de ainda nos fazer sentir culpados. De quase nos obrigar a olhar para nós à procura de um dedo extra que nunca vimos, um cabelo estranho que parecia farto, um cheiro insuportável. Nós somos outra vez infinitamente pequenos quando alguém nos rejeita e nos faz sentir feios, aquém do esperado, maus na cama ou na forma como nos apresentamos.

Um silêncio prolongado compromete momentaneamente a nossa existência. Quando - ainda por cima - foi declarado amor tudo se agrava. Sentimo-nos feridos sem saber aonde acaba a dor e, sim, essas pessoas dificilmente serão desculpadas: estava com elas a possibilidade de dizerem: “desculpa, mas afinal não foste aquela que eu pensava” ou: “somos melhor amigos do que namorados”. Há mil formas de o pronunciar sabendo que mesmo nas palavras, sobretudo nas palavras, estaremos a dar largas à mágoa, mas ainda assim, por mais duras que sejam as palavras elas não ferem como um silêncio absurdo que não traz letra ou faz luz e prolonga a nossa angústia à mercê de um toque seco de um telemóvel manejado às vezes sem emoção.

Fui muitas vezes magoada por pessoas incapazes de dizer em palavras, o comodismo de me preterir, e no silêncio encontrarem a melhor forma de aparentemente saírem ilesos disso: e isso, parece-me, era uma grande responsabilidade.

Às vezes precisamos de crescer para saber usar as palavras em vez do silêncio. As palavras tornam-se difíceis quando temos de as escolher adequadamente enquanto o silêncio é uma forma preguiçosa de dispensar os outros.

A dor que os outros nos infligem quando nos dispensam mudos dificilmente será esquecida.

Até as palavras mais cruas vencem à angústia de uma página em branco.

Hoje em dia chamam-lhe Ghosting? Eu chamo-lhe dor sem razão.

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