Disponibilidade da água em Portugal reduziu-se 20% nos últimos 20 anos

Estudo apresentado esta terça-feira numa sessão da Agência Portuguesa do Ambiente apresenta cenários preocupantes sobre o futuro dos recursos hídricos em Portugal e um diagnóstico inédito deste sector.

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Albufeira da barragem de Santa Clara, no Alentejo Rui Gaudêncio

O primeiro estudo realizado em Portugal sobre a água que temos e que gastamos ou perdemos apresenta hoje a maioria do país debaixo de uma situação de stress hídrico entre a escassez elevada e extrema. Os cenários para o futuro são igualmente preocupantes, sendo que o pior encontra-se na previsão para 2100 com a zona do Algarve com uma redução de 49% no volume de água dos rios e de menos 29% de precipitação. O ministro do Ambiente e Acção Climática considera que os dados do “estudo de disponibilidades hídricas actuais e futuras” devem marcar um “antes e depois” no capítulo da água em território nacional. Entre outras medidas, a água pode ficar mais cara onde é mais rara (a Sul do país) e as licenças de uso de água podem ser revistas.

Os dados apresentados esta terça-feira representam o primeiro estudo realizado em Portugal que fornece uma base de dados (bacia a bacia hidrográfica, com detalhes sobre a origem e destino da água que usamos) e também uma plataforma de modelação sobre a gestão dos recursos no país e arriscamos dizer que as boas notícias acabam aí. Entre outros resultados, este primeiro exercício conclui nos últimos 20 anos a disponibilidade de água reduziu-se cerca de 20%. Mais: nos últimos 20 anos a precipitação em Portugal e Espanha diminui cerca de 15%, prevendo-se que diminua entre 10 a 25% até ao final do século. O trabalho realizado por Rodrigo Proença de Oliveira, especialista na empresa de consultoria na área do ambiente BlueFocus e investigador no Instituto Superior Técnico, da Universidade de Lisboa, na secção de Hidráulica e Recursos Hídricos e Ambientais, nota ainda que actualmente são captados em Portugal cerca 6000 hm3/ano, excluindo os volumes utilizados nos aproveitamentos hidroeléctricos. “A agricultura é responsável por 70% deste volume, seguindo-se o abastecimento à população (13%), a termoelectricidade (9%) e a indústria (6%)”.

Para o ministro do Ambiente, com estes detalhes sobre a actual situação e os melhores e piores cenários para o futuro, agora é a altura de fazer mais e melhor.

“Mais do que ficar preocupados, a palavra a usar agora é eficiência. A pergunta essencial é ‘como podemos fazer melhor com a água que temos?’ Temos de ter melhor capacidade de gestão, ser mais inteligentes”, disse o ministro na abertura da sessão. Assinalando que os planos de eficiência hídrica para o Algarve e para o Alentejo avançaram “mesmo a tempo”, Matos Fernandes avisou: “Não basta ficar aí, temos de ir país fora para sermos mais eficientes.”

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Com a maioria do país debaixo de uma situação de stress hídrico entre a escassez elevada e extrema, os cenários para o futuro são igualmente preocupantes. Um exemplo: no melhor dos cenários (considerado como o mais realista) a precipitação vai reduzir entre 3 e os 12% até 2100 em diferentes regiões hidrográficas e no pior cenário (o mais pessimista) a redução será entre os 14 e os 29%. O problema agudiza a sul do Tejo, já se sabe.

Se não vive ou é agricultor junto ao rio Mira, provavelmente ainda não se deu conta que aqui encontramos hoje um cenário de “escassez extrema” no índice que é conhecido pelos especialistas como WEI+ (Water Explotation Index) e que corresponde à razão entre a procura média anual de água e os recursos médios disponíveis a longo prazo, permitindo avaliar o stress hídrico a que se encontra sujeito um território. Este índice vai do menor stress no valor zero ao maior stress no valor 1. “O índice de escassez WEI+ atinge valores acima de 0.6 em várias bacias hidrográficas, e mais gravemente a do Sado e do Mira”, especifica o estudo apresentado.

O trabalho mostra, bacia a bacia, dados sobre as disponibilidades de água em regime natural, os cenários de alteração climática, o melhor (RCP4.5) e o pior (RCP8.5) para o período de 2011-2100, as necessidades de água dos vários sectores utilizadores, as disponibilidades de água “actuais” e futuras. Na apresentação do estudo, Rodrigo Proença de Oliveira lamentou a falta de alguns dados importantes.

Em declarações ao PÚBLICO, o autor do estudo admitiu que houve um desinvestimento na monitorização destes recursos, sobretudo entre 1995 e 2010, que deixou importantes lacunas de dados. Um “apagão” que justifica de forma simples: “A monitorização é algo que é muito oneroso.” As tais “lacunas” são precisamente um dos desafios identificados pelo investigador.

Outro dos desafios também tem a ver com mais e melhor conhecimento. “É necessário aprofundar o conhecimento sobre dotações efectivas de rega para as várias culturas, localização das áreas regadas, eficiências no uso de água para rega (desde a captação ao pé da planta), volumes captados em massas de água superficiais e subterrâneas para utilização na rega e na actividade pecuária”.

Ainda assim, com lacunas e alguns dados em falta, o estudo oferece uma “plataforma de informação e modelação para aperfeiçoamento futuro” que até agora não existia. E que muito brevemente deverá ser aumentada e enriquecida como os dados já recolhidos sobre a realidade nas sub-bacias, permitindo uma visão ainda mais detalhada. Para já, apenas adianta que a realidade nas sub-bacias é nitidamente marcada por uma grande heterogeneidade, como bons e maus exemplos de gestão da água.

Na apresentação do estudo, o ministro confirmou que o diagnóstico é preocupante. “Mas não vale a pena estar com cataclismos. Não podemos continuar com a indulgência, acabaram-se as desculpas”, disse ao PÚBLICO, comparando a importância e relevância deste estudo com a do Roteiro para a Neutralidade Carbónica.

Sobre as medidas a tomar perante um diagnóstico crítico que pede uma acção urgente há várias hipóteses em cima da mesa. Podem ir desde a construção de novas barragens (onde se provar que o investimento pode ter retorno) à dessalinização de águas, passando por muitas outras formas de aumentar a disponibilidade deste recurso e reduzir o desperdício.

O presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, Nuno Lacasta, fez questão de sublinhar também, mais do que uma vez, a necessária gestão mais criteriosa das licenças (os chamados Títulos de Utilização de Recursos Hídricos emitidos para serviços municipais, indústrias, rega ou produção de electricidade) a emitir no futuro, bem como uma provável revisão das licenças já emitidas, à luz deste novo conhecimento.

Novo conhecimento ou, nas palavras do ministro do Ambiente, uma importante ferramenta de gestão dos recurso hídricos que até hoje estava em falta. Na sua intervenção, o ministro destacou uma boa e uma má surpresa. “Os números do Tejo são melhores do que estava à espera”, disse. Depois, partindo do princípio de que “há quatro bacias que não são prioritárias: Minho, Lima, Douro e Mondego”, Matos Fernandes apontou que os casos mais preocupantes estarão na zona do Ave, Leça e Vouga, mostrando-se mais inquieto com esta última. “O Vouga foi a minha surpresa do lado da preocupação”, confirmou.

Ao PÚBLICO, adiantou ainda que os beneficiados com estes dados são, em primeiro lugar o Ministério do Ambiente e a APA. Entre os principais parceiros para este rumo à eficiência, Matos Fernandes admite que “é inevitável que a agricultura como maior consumidor dos recursos [70%] seja o mais importante dos parceiros”.

E a gestão das águas em Portugal será possível de fazer sem a participação de Espanha? “Nós não podemos gerir os nossos recursos sem Espanha nem independentemente de Espanha, por isso existe a convenção de Albufeira que é essencial. Mas temos de perceber que o stress hídrico em Espanha é maior do que em Portugal e que a utilização de água per capita em Portugal é maior do que em Espanha. Mas há coisas que vamos ter de resolver sozinhos e do lado da eficiência, isso é evidente.”

Como? “A medida mais urgente é sermos capazes em primeiro lugar de não perder água, seja nos canais de rega na agricultura onde não há contadores e se funciona por estimativa. Temos de ser mais eficientes e ter menos perdas seja na agricultura ou nas redes urbanas.” Outro dos planos passa pela melhor reutilização de águas residuais. “Esgoto tratado é água para a maior parte das utilizações, excepto beber e tomar banho”, defende.

Nos exercícios de planeamento feitos antes, nomeadamente nos planos das bacias hidrográficas, nunca ninguém terá conseguido responder à pergunta que Matos Fernandes considera essencial: “Afinal, quanta água é que nós temos.” É essencial responder a esta pergunta “para fixar regras de planeamento e tornar muito claro que temos mesmo de dar um melhor uso à água que temos e temos de conhecer melhor a sua escassez”. Os números que agora temos não são para assustar ninguém, frisa o ministro, sublinhando que têm de ser usados para informar as melhores decisões na mudança urgente e rápida que se exige para a água que temos e gastamos em Portugal.

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