A Convenção da Haia de 1980 sobre os aspetos civis do rapto internacional de criança – a decisão de não regresso (alguns tópicos)

Proferir cegamente uma decisão de regresso pode ser mais prejudicial para uma criança muito pequena do que a manutenção da criança a viver com a mãe que a deslocou ilicitamente

Com a globalização do mundo e a livre circulação de pessoas, é crescente o número de casais internacionais, entendendo-se por casal internacional aquele em que ambos têm nacionalidades diferentes entre si ou que, ainda que tendo a mesma nacionalidade optam, num determinado momento das suas vidas, por estabelecer o centro da vida familiar e social em país diferente daquele de que são nacionais.

A situação pode complicar-se quando, existindo filhos, por exemplo, um dos membros do casal, decide levar a criança, sem o consentimento do outro progenitor, para o seu país de origem ou para outro país. Nestas situações, impõe-se acionar os mecanismos previstos na Convenção da Haia de 1980, por forma a obter uma decisão de regresso da criança ao Estado onde tinha a sua residência habitual.

Com efeito, conforme resulta do artigo 1.º da Convenção, este instrumento internacional tem por objeto:

“a) Assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente;”

Este regresso deve ser ordenado se tiver decorrido menos de um ano entre a data da deslocação ou da retenção ilícita da criança e a data de início do acionamento dos mecanismos da Convenção. Este regresso deve ainda ser ordenado ainda que tenha decorrido mais de um ano, o que apenas não deverá acontecer se ficar provado que a criança, entretanto, já está integrada no seu novo ambiente (artigo 12.º da Convenção).

Para além desta situação, importa ter em conta, nomeadamente, quanto previsto no artigo 13.º alínea b) da Convenção, que prevê a possibilidade de ser proferida uma decisão de não regresso da criança ao Estado onde tinha a sua residência habitual quando se prove que “existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.”

A aferição da existência de uma situação deste tipo deve ser norteada pelo princípio do superior interesse da criança e, aqui, várias situações podem ser ponderadas, nomeadamente, a idade que a criança tem.

Concretizando, se tivermos uma situação em que uma mãe desloca ilicitamente a criança do Estado da sua residência habitual para outro Estado, sem prévio consentimento do pai, e se essa criança for um bebé de meses ou, mesmo de um ano de idade ou um ano e alguns meses, ordenar o regresso desta criança ao seu país de residência habitual, independentemente do regresso da mãe, a qual, em regra, constitui a sua figura primária de referência, pode ser enquadrada como uma situação violenta para a própria criança, criando um desequilíbrio emocional para esta, que se mostra intolerável. Evidentemente, que tudo dependerá da prova que venha a ser produzida, pois podem existir situações em que uma criança tão pequena esteja mais aos cuidados do pai ou esteja vinculada emocionalmente às duas figuras parentais de forma idêntica.

Assim, de acordo com o princípio do superior interesse da criança, tendo em conta a idade de uma criança tão pequena, proferir cegamente uma decisão de regresso ao abrigo da Convenção da Haia de 1980 pode ser mais prejudicial para esta criança do que a manutenção da criança a viver com a mãe que a deslocou ilicitamente pelo que, numa situação destas, em princípio, deve ser recusado o regresso da criança.

Saliente-se, ainda que, uma decisão que não ordene o regresso da criança proferida ao abrigo do artigo 13.º alínea b) da Convenção, não se apresenta como contraditória com o facto de a criança ter residência junto da mãe e do pai, exatamente porque é tomada no quadro de uma ponderação factual sobre o que é melhor, em concreto, para aquela criança.

Em súmula, no âmbito da aplicação da Convenção da Haia de 1980, estando em causa a necessidade de proferir uma decisão quanto a uma criança de tenra idade, importa ponderar, em face do seu superior interesse, como se posiciona esta criança emocionalmente e em termos de ligação afetiva, junto de cada uma das suas figuras parentais pois pode acontecer que, estando a criança mais vinculada do ponto de vista afetivo e emocional a um dos progenitores e tenha sido esse progenitor que a tenha deslocado ilicitamente para outro Estado, o superior interesse da criança pode conduzir a que não seja ordenado o seu regresso ao Estado onde tinha a sua residência habitual, pois, caso contrário, ou seja, proferindo-se uma decisão de regresso, a criança poderia ficar numa situação intolerável nos termos do artigo 13.º alínea b) da Convenção.

Impõe-se, por isso, uma ponderação cautelosa e prudente da aplicação da Convenção, por forma a que a decisão que vier a ser proferida cumpra com o escopo deste instrumento internacional que, infelizmente, tem vindo a ser cada vez mais utilizado, por existirem cada vez mais crianças em situações de deslocação ou retenção ilícita num Estado.

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