Faltaram-lhe portas e janelas

Em tempos incertos como o que vivemos, do que mais precisamos é de ter oportunidade para corrigir os erros. E para isso não é obrigatoriamente necessário convocar eleições antecipadas.

Embora o Orçamento do Estado não tenha merecido a aprovação dos deputados, essa decisão não deve constituir razão suficiente para que o Presidente da República convoque eleições antecipadas. Isso mesmo foi declarado pelo primeiro-ministro que, perante a situação criada com aquela decisão, afirmou que era sua vontade manter-se no exercício de funções. Esta declaração é particularmente importante na medida em que nela está implícita a vontade de apresentar uma nova versão daquele documento. 

Como já aconteceu noutras ocasiões e com outros diplomas - lembremo-nos do que se passou com a aprovação da Lei de Bases da Saúde - este Presidente da República tem por hábito pronunciar-se frequentemente sobre os assuntos que só ao executivo dizem respeito. Neste caso foi mais longe, procurando influenciar o sentido da votação dos deputados, muito antes de ser conhecida a decisão final, e ainda a discussão na generalidade nem sequer tinha começado. É verdade que, embora neste caso não tivesse havido 25.ª hora e as negociações entre os partidos que poderiam contribuir para a viabilização daquele diploma tivessem fracassado, isso deve ser interpretado como um acontecimento possível nos regimes democráticos.

Não é este o lugar para dissecar as razões para que tal se tivesse verificado, nem estabelecer uma hierarquia de responsáveis pelo sucedido. Em devido tempo, os eleitores terão oportunidade de proceder ao julgamento do que se verificou naquele dia e quem devem responsabilizar. Provavelmente somos todos responsáveis, porque demos como sólido um edifício a que lhe faltavam algumas portas e janelas para as ideias poderem circular. A partir do fim da tarde de 27 de Outubro estas falhas passaram a constar da equação que tem de ser resolvida daqui para diante. Uma das lições a retirar é, por isso, que aqueles que se empenharam a carregar cimento e tijolos vão também de ter de ficar vigilantes sobre a sua manutenção e segurança, caso o edifício venha a conhecer melhores dias. 

Para que tudo se tivesse passado segundo a legis artis republicana, o Presidente da República tinha por obrigação aguardar pelo resultado da votação, ouvir os partidos políticos e convocar o Conselho de Estado, se fosse essa a sua vontade, e comunicar, então, ao país a sua decisão. Tal como as coisas se passaram, a espada da dissolução da Assembleia da República esteve sempre apontada à cabeça dos deputados, vai estar presente na audição dos partidos políticos e na reunião do Conselho de Estado. Isto é, antes do fim do dia, anuncia-se que não existe dia seguinte. Tendo defendido em várias ocasiões que em democracia há sempre alternativas, desta vez deu o dito por não dito e afirmou que só existe o caminho que desemboca na convocação de eleições antecipadas. 

Este é um mau serviço que o Presidente da República presta à democracia e ao país. Porque em seu entender deve existir uma ruptura entre um processo que teve o desfecho que se conhece e a reavaliação que pode ser feita dos motivos que levaram a esse desfecho. Porque em seu entender o Governo esgotou todas as possibilidades de reconsiderar as recusas das propostas apresentadas pelos partidos da esquerda, e estes ponderarem as exigências que fizeram. Ora a democracia é o regime em que a tentativa e erro também têm lugar. Considerar-se que só existem tentativas, sobretudo numa matéria recheada de incertezas, é fazer do maniqueísmo uma doutrina do Estado. E em tempos incertos, como o que vivemos, do que mais precisamos é de ter oportunidade para corrigir os erros. E para isso não é obrigatoriamente necessário convocar eleições antecipadas.

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