Resposta inicial do Reino Unido à covid-19 foi “um falhanço de saúde pública”

Relatório de duas comissões parlamentares salienta que a vacinação foi um sucesso, mas diz que o atraso na aplicação dos confinamentos “pode ter custado milhares de vidas”. Familiares de vítimas da covid-19 exigem investigação independente.

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O Governo de Boris Johnson decretou o primeiro confinamento quase dois meses depois do primeiro caso Reuters/PHIL NOBLE

A decisão do Governo britânico de não impor um confinamento nas primeiras semanas da pandemia de covid-19 — em Fevereiro e Março de 2020 — “foi um dos maiores falhanços de saúde pública na História do Reino Unido, e custou milhares de vidas”, conclui um relatório elaborado por duas comissões parlamentares. 

Segundo o documento, a resposta aos primeiros casos, a partir de 31 de Janeiro de 2020, teve como referência um cenário de pandemia de gripe, a conselho do grupo de cientistas que o Governo britânico costuma ouvir em situações de emergência.

No relatório divulgado esta terça-feira, os deputados das comissões de Saúde e de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Comuns (a câmara baixa do Parlamento britânico) salientam que o conselho inicial dos cientistas não foi contestado pelo Governo, o que revelou “um certo grau de pensamento de grupo” — um processo pelo qual o desejo de consenso leva à tomada de decisões erradas.

Os cientistas viriam a aconselhar a aplicação de medidas restritivas a 16 de Março, e o primeiro período de confinamento começou uma semana depois, a 23 de Março.

Antes disso, a 11 de Março  no dia em que a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia de covid-19 , mais de 50 mil pessoas assistiram a um jogo de futebol entre as equipas do Liverpool FC e do Atlético de Madrid; e, entre 10 e 13 de Março, 250 mil pessoas assistiram às corridas de cavalos no Festival de Cheltenham.

"Política deliberada"

“O véu de ignorância através do qual o Reino Unido viu as semanas iniciais da pandemia foi, em parte, auto-imposto”, diz o relatório.

“Esta abordagem lenta e gradual não foi inadvertida, e não foi reflexo de um atraso burocrático nem de um desacordo entre os ministros e os seus conselheiros. Foi uma política deliberada proposta por conselheiros científicos e adoptada pelos governos de todas as nações do Reino Unido”, lê-se no documento.

Por outras palavras, o Governo de Boris Johnson não quis dificultar a transmissão do novo coronavírus entre a população, julgando que esse seria o caminho mais rápido e eficaz para se alcançar a imunidade de grupo uma abordagem “errada e que resultou num número inicial de mortes mais elevado do que teria acontecido com uma política mais enfática”, dizem os membros das comissões de Saúde e de Ciência e Tecnologia das Câmaras dos Comuns.

Numa entrevista à BBC, esta terça-feira, o presidente da Comissão de Saúde, Jeremy Hunt (antigo ministro da Saúde e ministro dos Negócios Estrangeiros nos governos conservadores de David Cameron e Theresa May), disse que havia a convicção, no Governo de Boris Johnson, de que a transmissão comunitária acabaria por se revelar como o único caminho para travar a progressão do vírus.

Ainda assim, tanto Jeremy Hunt como o líder da Comissão de Ciência e Tecnologia, Greg Clark (também do Partido Conservador), disseram que “era impossível fazer tudo bem”, e que a resposta do Governo britânico teve “erros e alguns grandes sucessos”.

Sucesso na vacinação

O maior sucesso, segundo o relatório, foi toda a abordagem em relação à vacina desde o investimento inicial na fase de investigação até à distribuição, num processo descrito como “uma das iniciativas mais eficazes na História do Reino Unido”.

Em sentido contrário, o ministro-sombra da Saúde, Jonathan Ashworth, do Partido Trabalhista, considera que as conclusões do relatório equivalem a uma “condenação” do Governo britânico e provam que foram cometidos “erros monumentais”.

E a principal associação de familiares de vítimas da covid-19 (a Covid-19 Bereaved Families for Justice) criticou os deputados por não ter sido ouvida no decorrer das investigações.

“O relatório que foi produzido é risível, e está mais focado em discussões políticas sobre se se pode levar computadores portáteis para as reuniões do gabinete de emergência, do que nas experiências de quem perdeu pais, parceiros ou filhos para a covid-19”, disse o grupo na rede social Twitter.

“Apesar disso, identificou erros claros e catastróficos que provocaram directamente dezenas de milhares de mortes desnecessárias”, disse a associação, que também apelou à abertura de uma investigação independente: “Só isso nos dirá que lições temos de aprender para protegermos vidas no futuro, e para que as famílias possam encerrar esta parte do processo de luto.”

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