Danças de Porto de Mós chegam a disco e vão ter um livro em 2022

É o primeiro disco do grupo AIRE, foi lançado sexta-feira e é apresentado este domingo num baile-concerto. Por trás dele há um projecto: devolver a dança e a música tradicional ao quotidiano, à medida do século XXI.

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Os AIRE com Marisa Barroso (de saia vermelha). Da esquerda para a direita, Sara Vidal, Emiliana Silva, Anne Clément, Samuel Louro e Rafael Gomes DR

O disco chegou agora, o livro virá depois. Mas um e outro fazem parte de um projecto que começou em 2018 em Porto de Mós e que tem por objectivo principal “devolver, de forma natural e espontânea, a dança e a música tradicional ao terreiro e ao quotidiano” no século XXI, mas sem o peso cénico do palco e dos trajes folclóricos tradicionais. Não se trata apenas de recolha, mas também de recriação, trazendo “nova sonoridade às músicas recolhidas pelos ranchos”, de forma a dar continuidade ao baile sem o desligar das raízes.

Marisa Barroso, professora de dança e investigadora do Instituto Politécnico de Leiria, é a mentora e coordenadora deste projecto que acaba de lançar nas plataformas digitais e em CD Danças de Porto de Mós, o primeiro disco do grupo AIRE, apresentado ao vivo este domingo num baile-concerto no Centro de Interpretação da Batalha de Aljubarrota, em São Jorge, Porto de Mós, às 16h30.

O primeiro passo neste trabalho, explica Marisa Barroso ao PÚBLICO, foi “recolher e escolher as danças que iriam fazer parte do projecto”, depois de “definir quais os pilares e quais seriam os principais envolvidos”. E nesta lista juntaram-se o grupo AIRE, a Câmara Municipal de Porto de Mós, o Instituto Politécnico de Leiria e a Associação de Folclore da Região de Leiria - Alta Estremadura, tendo como parceiros o Rancho Folclórico Luz dos Candeeiros (do Arrimal), o Rancho Folclórico de Mira de Aire, o Rancho Folclórico de Pedreiras e o Rancho Folclórico Sociedade Recreativa de Cabeça Veada. “Definir o que pretendíamos a prazo para cinco anos foi uma peça fundamental”, diz Marisa Barroso.

O filtro da comunidade

A intenção era ter, não apenas o CD, mas também, e em simultâneo, “um livro com as danças escritas e com o processo que tem vindo a ser desenvolvido”. Mas isso não se revelou exequível, pelo que o livro, que não foi abandonado, deve ser publicado em 2022. Para já, o CD reúne vários tipos de danças da região, num total de 16 faixas, das quais nove têm letra e sete são instrumentais. Provenientes de quatro localidades assinaladas no disco (Arrimal, Cabeça Veada, Mira de Aire, Pedreiras), juntam tipos de dança bem específicos, como Choutice (aportuguesamento de Schottische, espécie de polca europeia), Loureiro, Oliveira, Passe Catre, Pirolito, Reinadio, Vá de Roda, Valsa, Verde Gaio, etc.

“Houve uma fase de recolha junto dos ranchos folclóricos, onde discutimos as escolhas com os próprios ranchos. E mostrámo-las à comunidade antes de as gravarmos, em vários bailes, até porque a ideia é deixar música para se dançar disponível na comunidade.” Foi este processo que depois conduziu à gravação do disco, já com “arranjos pensados para a transmissão da dança”, a cargo do grupo AIRE: Anne Clément (flautas de bisel e voz), Emiliana Silva (violino), Rafael Gomes (concertina), Samuel Louro (bateria, percussão, guitarra) e Sara Vidal (voz e harpa celta), cantora que já passou por diversos grupos e projectos, desde os Luar na Lubre (um dos mais célebres da Galiza) até à Companhia do Canto Popular, passando pelos Diabo a Sete, Espiral ou A Presença das Formigas. A produção é da Espírito Claro e a edição e distribuição é da Sons Vadios.

Pensar as danças portuguesas

O disco, porém, não é “a” história da dança da região, é apenas uma pequena parte, apesar da riqueza patrimonial que representa. “É uma gota de água no oceano”, diz Marisa Barroso. “Nós tínhamos que escolher algum sítio da região [Leiria] e escolhemos Porto de Mós, porque tem apenas quatro ranchos. Contudo, as danças não são apenas restritas a essas localidades, são comuns a todo o distrito de Leiria e por isso são representativas.”

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A capa do disco

O alinhamento dos temas no disco é feito, propositadamente, por ordem alfabética, para que se possa comparar, por exemplo, o Loureiro de Arrimal com o de Mira de Aire. “O de Mira de Aire é profundo, cantado no feminino, de alguém que ficou despeitado e ainda não conseguiu superar, embora esteja a tentar; já o de Arrimal é um Loureiro jocoso, cantado no masculino, onde o despeito é motivo de brincadeira. Embora no fim os dois cheguem à conclusão de que ainda gostam daquela pessoa que não lhes corresponde. Estes Loureiros têm a mesma história e letras muito parecidas, mas danças completamente diferentes. Um vem em compasso ternário e outro em compasso binário, um tem valsa e vira e o outro tem passos combinados em pares. Isto ajuda as pessoas a começarem a pensar no que são as danças portuguesas e que sistematização é que vamos fazer a partir daqui.”

Uma história em mudança

A datação exacta de cada tema, porém, é tarefa condenada ao fracasso, até porque ao longo dos tempos as danças e passos se vão alterando, como tem constatado Marisa Barroso nos seus estudos: “Se a dança é a expressão de uma comunidade e de um povo, livre-se de quem pense que as pessoas não se podem expressar livremente no seu corpo. Uma das coisas que tenho assumido neste estudo é que, quando há liberdade de expressão nos passos, há terminações que são personalizadas por cada bailador. Por isso, ao escolher uma forma e ao fixá-la, já estou a fazer uma mudança na história. Porque se eu for ensiná-la, muita gente vai aprender dessa forma, quando no rancho cada um faz de forma diferente. E mais tarde pode ser que alguém queira fixar isso desse modo, porque fui eu que ensinei.”

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