Portugal e os seus esqueletos

Um dos pontos comuns às estações do percurso de hoje são os carros nos seus largos. Percebemos depois que não são as estações a beneficiar da presença dessas viaturas. Os edifícios com as paredes cansadas e abandonados rodeiam a gare que guarda os azulejos que ilustram os tempos em que o povo ia às estações para apanhar o comboio, não importava a distância.

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Pedro Fazeres

Munidos de mapa de papel e leitura da sinalética, decidimos descobrir as paragens da Linha do Sul, cujo serviço de passageiros foi, na sua maioria, emulado no altar da austeridade em 2011. Após alguns quilómetros, a sensação de estar na estrada errada fez com que fosse preciso por à prova a capacidade de conduzir e decifrar o mapa ao mesmo tempo. Claro que o mapa já estava aberto, pronto esta situação. 

A vista diz-nos que estamos no Alentejo e o primeiro apeadeiro é Pereiras. O acesso esburacado é sinal do abandono acrescentado ao misticismo desta região. É-nos difícil dizer que as coisas estão bem. As ervas daninhas rompem pelas plataformas, contrariando a ideia do progresso que motivou esta linha. As velocidades continuam as do século XIX: um Alfa passa a 90. A cinco quilómetros dali, voltamos à N266 e vamos aos ziguezagues até Santa Clara-Sabóia.  

Um dos pontos comuns às estações do percurso de hoje são os carros nos seus largos. Percebemos depois que não são as estações a beneficiar da presença dessas viaturas. Os edifícios com as paredes cansadas e abandonados rodeiam a gare que guarda os azulejos que ilustram os tempos em que o povo ia às estações para apanhar o comboio, não importava a distância. Começamos a entender o esqueleto que rodeia as estações que visitamos. Resta o que o tempo ainda não destruiu e a esperança das populações em voltar a ter um transporte. Essa vontade leva-nos a Luzianes. 

Somos surpreendidos por uma estrada-estaleiro, cuja gravilha fazia chorar os pneus. Fugindo das tampas de esgoto duvidosas, paramos. O silêncio trazia a vontade de ver um comboio e fazia-nos pensar. Sim, o serviço de passageiros poderia minimizar o isolamento destas terras. À excepção daquela estrada, se se iniciasse o serviço amanhã, as condições estavam reunidas. As ervas das plataformas serão destruídas pelos passos das pessoas, pelo progresso. 

Entramos na N123 e a preocupação com os pneus passou para segundo plano: ver um comboio passar, ou vê-lo parar, seria ideal. 

Desviamos para Amoreiras, onde vemos a linha com os carris enferrujados. A gare estava impecável e o café do lado tresandava a masculinidade tóxica. Entre cervejas em cima do balcão, pedimos qualquer coisa para comer. O cuidado a fazer a sandes destruiu o desagrado escondido pela máscara. No fim, com o senhor entregar-nos a sandes na mão, embrulhada cuidadosamente em papel de prata, dentro do saquinho, fez com que nos olhássemos pela primeira vez. Saímos serenos, pelo meio das mesas, onde cinzeiros eram a rotunda da confusão de cerveja morta e jogos de sueca. Nós e a mania de julgar o livro pela capa… 

Surgiu a indicação para a Funcheira. Ali, paramos o carro e nem os vidros fechamos. Vamos directos às plataformas, com a alegria de uma criança que recebe um brinquedo. Passeamos pelo recinto e vemos a quantidade de edifícios abandonados que rodeiam a gare, imaginando dias fervilhantes vividos noutras décadas. Tentamos falar com alguém para entrar no edifício, sabendo que não podemos. A senhora disse o óbvio, enquanto tenta salvar aquilo que fritava. Então, ficamos a olhar e a ser absorvidos por aquele ambiente. 

É tempo de ir para casa. Entre curvas, percebemos que somos a geração que não sabe fazer contas em escudos. Esta dicotomia, entre os esqueletos que restam daquele serviço e o Portugal de 2021, vê nesta região um ponto de encontro especial. Queremos voltar, nem que seja para comer a sandes e conseguir ver um comboio.

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