Para uma teoria do 11 de Setembro: entre a violência sem combate e a guerra não-declarada

A planificação espectacular dos atentados e a acção contra a segunda torre do World Trade Center, poucos momentos depois do ataque à primeira, levou o terrorismo a uma escala sem precedentes: a reconceptualização do terror pelo lado da cibernética, procurando um iniludível efeito mediático.

Os avassalantes atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 que atingiram Nova Iorque, Washington e a Pensilvânia suscitaram inúmeros ângulos de análise e de debate e continuarão necessariamente envoltos em polémica, tanto mais que foram supostamente perpetrados em nome de convicções de cariz religioso, impelidas por uma interpretação abusiva do Islão. Perante a inverosímil irracionalidade televisionada ao vivo a nível global, duas questões centrais se colocaram então: ocorreu ou não uma metamorfose do terrorismo? Em que medida o pensamento estratégico em matéria de segurança e defesa, baseado fundamentalmente na lógica da dissuasão, foi afectado? Em suma, constituiu o 11 de Setembro um traço clássico de terror indiscriminado ou traduziu, antes, uma manifestação premonitória dos conflitos pós-modernos?

Uma das dimensões de certo modo insuficientemente analisada nos atentos de 11 de Setembro de 2001 prende-se com o seu enquadramento numa escala de conflitos mais ambiciosa. A primeira interrogação entronca no problema de saber se o 11 de Setembro representa uma alteração significativa na tipologia dos chamados conflitos de baixa intensidade – um espectro de hostilidades essencialmente definido pela ausência manifesta de enfrentamentos directos entre os contendores. A característica mais importante desta taxonomia de conflitualidade simbiótica reside na ultrapassagem do plano vertical das batalhas clássicas entre países, marcado por acções militares abertas, para uma lógica horizontal, multidimensional, integrando as componentes civil, psicológica, ideológica e outras. Esta modalidade de violência contra civis, distinta da guerra convencional, é não obstante altamente politizada e visa uma acentuada desestabilização social. A sua força paradoxal reside no efeito surpresa do terror e no assassinato selvagem de populações indefesas, tal como no pânico e dor que gera.

Conceptualmente, o exercício de intelecção dos atentados de 11 de Setembro remete, assim, para um dos extremos da escala dos conflitos de baixa intensidade, ou seja, para formas sofisticadas daquilo que então designei de violência sem combate e de guerra não declarada. Este tipo de violência indiscriminada tem um carácter difuso, não diferencia combatentes de não-combatentes, e não faz distinção entre os níveis de segurança interna e externa, anulando, por via disso, os conceitos tradicionais de frente e de retaguarda. Outra peculiaridade da marca hiperterrorista do 11 de Setembro é a exclusão de qualquer possibilidade de compromisso por parte dos seus mentores, que não procuravam qualquer vantagem com vista a um processo negocial ortodoxo, a empreender ulteriormente. Com efeito, este plexo organizacional protagoniza uma forma de guerra cultural ilimitada, e não procura necessariamente o acesso ao statu quo.

Há 20 anos, quando o ataque ao coração de Nova Iorque surpreendeu o mundo, surgiram logo muitas perguntas: quem estaria por trás daquele momento? Porquê? Que consequências teria na América e no mundo?

Teresa Pacheco Miranda,Teresa Abecasis

Mas, a “inovação” talvez mais patente assentou na transmissão televisionada do ataque. A planificação espectacular dos atentados e a acção contra a segunda torre do World Trade Center, poucos momentos depois do ataque à primeira, com recurso a aviões comerciais pirateados, visou objectivamente permitir a difusão instantânea das acções kamikazes, levando o terrorismo a uma escala sem precedentes: a reconceptualização do terror pelo lado da cibernética, procurando um iniludível efeito mediático. Miguel Gaspar, grande jornalista do PÚBLICO, actualizando a própria lógica da conflitualidade contemporânea, viria a observar de forma especialmente lúcida nas páginas deste mesmo diário que aquilo que ocorreu nos atentados terroristas de Madrid de Março de 2004, quando comparados com os acontecimentos de Nova Iorque, foi um confronto entre uma velha tecnologia – a televisão – e uma nova tecnologia – os telemóveis com ligação à Internet –, usados para desencadear as explosões. [1]

A segunda questão prende-se com os efeitos políticos e estratégicos do ataque a centros nevrálgicos da única superpotência de então. Com efeito, é no seu direccionamento, visando alvos especialmente simbólicos dos Estados Unidos, que reside outra dimensão distintiva da acção terrorista do 11 de Setembro. Foi, desde Pearl Harbor, o primeiro grande revés consumado no seu próprio território. O “êxito” dos atentados revelaria, por sua vez, graves vulnerabilidades e mesmo alguma inépcia do centro do império em matéria de intelligence. No campo específico do pensamento estratégico, os eventos de 11 de Setembro acarretaram uma deslocação do foco na dissuasão – cuja pedra angular é o argumento da retaliação – para uma lógica de defesa activa por parte dos Estados Unidos. Perante o advento espectacular do neoterrorismo suicida, a dissuasão, que se baseia na ameaça de penalização futura de eventuais agressores, é anulada pela vontade fatal dos perpetradores de morrer no decurso dos ataques.

Ora, o esgotamento da dissuasão tornou “necessária”, na óptica de Washington, uma alteração qualitativa da doutrina estratégica forçando medidas preventivas no sentido de inviabilizar a materialização de novos atentados. O cerco aos santuários dos terroristas em países que os patrocinam passa a ser doravante um dos componentes centrais da nova orientação estratégica, inserindo-se neste plano as acções punitivas que levarão à destituição, ainda antes do final de 2001, do regime talibã – ironicamente de regresso a Cabul, vinte anos depois. Um dos óbices da reorientação doutrinária, prosseguida na altura pelos Estados Unidos, assenta no facto de que quer a noção de “guerra preemptiva”, quer a noção de “guerra preventiva”, não terem cabimento no consenso existente no direito internacional público, pelo que essas acções de carácter antecipatório são ilegítimas. Foi nessa medida que a invasão do Iraque de Março de 2003, sempre sustentada pela administração norte-americana de então como um prolongamento “necessário” da luta anti-terrorista, foi considerada ilegal.

[1] Cf. Gaspar, Miguel. “Telemóveis contra televisão nos atentados de Madrid”, Público, 23 de Julho de 2004, p. 45.

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