Quando a escola falha na relação do ensino do Português com a Arte

No ensino do Português, há poemas que convivem lado a lado com bilhetes da CP ou programas televisivos e outros textos funcionais, tendo em comum uma aberração de questões que nos deixam perplexos e magoados.

A finalidade da arte não é agradar. O prazer é aqui um meio. Não é neste caso um fim. A finalidade da arte é elevar.
Fernando Pessoa (1888-1935)

Fazer arte é querer tornar o mundo mais belo, porque a obra de arte uma vez feita, constitui beleza, beleza acrescentada à que há no mundo.
Fernando Pessoa (1888-1935)

Ao longo dos anos, e enquanto professora de Português, presenciei a reacção de alunos que nunca haviam reflectido sobre o conceito de Arte e cuja sensibilidade não fora educada nesse sentido, em casa, falhando muitas vezes a Escola na seriedade desse trabalho imperioso; presenciei também a reacção dos que eram minimamente capazes de atribuir-lhe um significado e testemunhar a sua influência favorável, em vários momentos da sua ainda curta vida, precisamente porque em casa haviam encontrado diálogo propício. E como a experiência já me evidenciara quão vital era essa força que nos alimenta o espírito, toca, consola e enriquece, tornou-se objectivo proeminente da minha função de professora não só colmatar uma lacuna que, a permanecer nos alunos, determinaria o acentuar de diferenças sociais, mas também revigorar o encontro nos que haviam já dado os primeiros passos na assimilação do Belo, daquilo que comove, que ilumina, que faz pensar e que dá prazer ainda que tudo isso possa acontecer, em pleno, mais tarde, como tive oportunidade de verificar com alguns dos meus alunos. Sempre estive segura de que a minha postura interferiria na formação da personalidade dos que me eram confiados, e que em mim confiavam, em cada início de Outono. E não me enganei porque o tempo demonstrou-o nesse passado e tem vindo a somar comoventes testemunhos, escritos e orais, de inúmeros alunos das muitas escolas onde leccionei.

Foi no ensino do Português, com o estudo de autores programáticos, que me empenhei em demonstrar aos meus alunos, do Básico ao Secundário, a importância da Arte, em geral, e da Literatura, em particular. A Literatura, como veículo privilegiado de reflexão sobre a condição humana e arte da palavra que “vive primordialmente dos [seus] sentidos indirectos”, exigindo uma interpretação da simbologia que expressa. Só compreendendo se pode efectivamente amar e é nessa procura de sentido, no silêncio da leitura e em diálogo tranquilo com a palavra, chave de diferentes olhares e vozes, que nos revelamos tantas vezes a nós próprios, indo forçosamente ao encontro do Outro e treinando assim a nossa capacidade de desobedecer a tudo o que colida com a nossa humanidade ou nos imponha o absurdo. Assim aconteceu também com muitos dos meus alunos, num trabalho cúmplice e comprometido.

Vivo em saudade os cerca de quarenta anos em que ajudei a desbravar ou a intensificar o caminho que leva ao estreito diálogo com uma obra de arte, seja ela escrita, plástica ou musical. Nesse percurso, foi relevante a reflexão de Fernando Pessoa sobre o facto de toda a Arte ser “uma forma de literatura, porque toda a arte é dizer qualquer coisa.” A demonstração é um pouco longa, mas imperiosa a necessidade de a registar: “[…] As artes que não são a literatura são as projecções de um silêncio expressivo. Há que procurar em toda a arte que não é a literatura a frase silenciosa que ela contém, ou o poema, ou o romance, ou o drama.” Por isso me envolvi interiormente nesta causa, nesta urgência de desfazer o mito da dificuldade no estudo da obra de um determinado escritor, com realce para a poesia, ou na compreensão da autenticidade das outras artes na vivência humana, com o firme propósito de desmontar a ignorância subjacente a esses tortuosos preconceitos, íntimos aliados de teses absurdas centradas na apologia da facilidade e do funcional, bem como na perspectiva da literatura como mero tipo de texto, a par de um rótulo de garrafa. Absurdos que se haviam manifestado já no indesejado Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), que pôs em causa a função normativa da ortografia e desfigurou a sua vertente cultural, em nome da facilidade, danificando a própria pronúncia das palavras e pondo mais uma vez em evidência a sobranceria da ignorância e a leveza mental de quem a impõe, transformada em lei.

Não esqueço o modo vibrante, e tão intensamente visível, das intervenções que, na sala de aula, aqui e ali surgiam, e como uns colegas completavam outros, intervindo eu naturalmente na saudável discussão que se gerava até à decifração da “frase silenciosa” contida nas obras artísticas apresentadas, fosse através da palavra, da cor ou do som. E assim iam ao encontro do “poema”, do “romance” ou do “drama”, tomando gradualmente consciência de que toda a arte expõe uma experiência humana, suscita perguntas e revela problemas inerentes à vida, propiciando o acto de pensar. Nesse sentido, confluem as palavras do filósofo francês, Emmanuel Lévinas (1905-1995), ao expressar que na “literatura vive-se ‘a verdadeira vida que está ausente’, que, precisamente, não é utópica.”; ou as de Van Gogh (1853-1890): “São searas sem fim sob um céu turvo, e não receei a tentativa de expressar tristeza e a mais profunda solidão… Quase acredito que estes quadros vos dirão o que não posso dizer em palavras, nomeadamente o que descubro de saudável e revigorante na vida do campo”; ou ainda as de Daniel Barenboim, pianista e maestro argentino, ao definir a música como “expressão da alma humana”, dizendo os sons qualquer coisa porque combinados entre si formam “palavras e frases”. A propósito da Música, impossível não contar a história do Paulo (não recordo o apelido) que, no Secundário, na Escola Marquês de Pombal, ouviu pela primeira vez música clássica, e a impressão foi de tal modo forte que me pediu emprestado o CD de Vivaldi com As Quatro Estações. Umas semanas depois, contou-me o seu professor de Geometria Descritiva que, antes de um teste, o Paulo lhe pedira autorização para estar com fones. Inquirido sobre o porquê, respondeu que aquela música de Vivaldi o acalmava e até inspirava. A autorização foi dada e, por coincidência, ou não, a classificação melhorou razoavelmente.

Depois da tenebrosa implementação da Reforma de 2003, tive a sorte, uma imensa sorte, de poder escapar ao contacto forçado com programas elaborados por gente pouco amante da leitura e convertida fanaticamente ao funcional e ao real, em estreita aliança com o poder político que tem retirado toda a dignidade ao Ensino. Ao optar pelo Ensino exclusivamente nocturno, que constituiu uma das mais enriquecedoras experiências escolares, livrei-me por completo das inenarráveis preparações de aulas, trabalhadas exclusivamente em grupo; dos textos literários, em prosa ou em poesia, interpretados com verdadeiros e falsos ou apresentados lado a lado com bulas, rótulos, etiquetas, na pura ignorância de que a literatura é uma arte e não um mero texto entre tantos outros; das matérias apresentadas em power point, na mira de mais uns pontinhos na avaliação; dos “complementos oblíquos” e afins surgidos com o “disparate” da TLEBS ou da designação de “Leitura Recreativa” ou de “Entretenimento” para o texto literário, tudo inovações correspondentes ao diktat da “nova escola”. A propósito do verbo “entreter”, usado para destrinçar o literário do funcional, vale a pena reflectir sobre as palavras de Fernando Pessoa a quem de novo recorro: “entreter não comporta intensidade, porque entreter está ligado a variar, variar a não-durar, e o que não dura nunca pode ser muito intenso.”

Agora, já aposentada, mantenho com os meus netos, alunos do 1.º ciclo, a mesma postura que tive com os meus alunos do Básico e do Secundário, confrontando-me, como é natural, com o mesmo diktat de 2003. E assim, oiço a minha neta ler um poema de António Pina e preencher o que confrangedoramente lhe solicitam, com cruzes à mistura e opções banais, que a minha neta apelida de “tão parvas” pela sua extrema “facilidade”, constando na folha ao lado uma ficha sobre o estudo de um “rótulo” de um protector solar. Não é exemplo único. Outros poemas convivem lado a lado com bilhetes da CP ou programas televisivos e outros textos funcionais, tendo em comum uma aberração de questões que nos deixam perplexos e magoados. A este propósito o lamento será o mesmo: aqui em casa, os meus netos são alertados para estas situações e dispõem de materiais que não só lhes educam a sensibilidade, como os levam a pensar ou como diz a minha neta a “pôr o cérebro a trabalhar”; em contrapartida, crianças há, e muitas são, que dependem da Escola para usufruir não só de alimento físico como espiritual e este último é-lhes contínua e conscientemente negado, em nome de uma Reforma que se mantém e despreza qualquer crítica, estando apostada em destruir as tradicionais disciplinas, com realce para as de Humanidades, mas não só. Estou convicta de que a revolução contra a estupidez, AO90 incluído, dar-se-á. É uma questão de tempo e de persistência!

Nada é tão gratificante para um professor de Português como observar o caminho percorrido pelos seus alunos, transpondo inúmeros obstáculos até se sentirem tocados por um autor (e isso acontece igualmente com os mais novos) descobrindo assim a amizade que entre ambos se criou e que Walt Whitman tão expressivamente descreveu, no seu poema Adeus: “Camarada, isto não é um livro,/ Quem isto toca, toca um homem,/ (É de noite? Estamos aqui sós?)/ É a mim que seguras, sou eu que te seguro a ti,/ Salto das páginas para os teus braços – a morte chama por mim.”

No ano lectivo de 1984/1985, os meus alunos do 11.º ano de Português, da Marquês de Pombal, fortemente motivados pelo estudo de Pessoa e heterónimos, criaram comigo um movimento em defesa do velho Café Martinho da Arcada que recebeu em pleno o apoio empenhado da sociedade civil, jornalistas, artistas, Ordens e Assembleia da República, tendo assim obtido a classificação de “interesse público” que impediu a sua transformação em mais um banco. Desse grupo, imperioso destacar os nomes de António Aires, Artur Anjos, Cristina Barbosa, Licínio Assis e Paulo Malícia, como imperioso será dizer que a primeira filha do Artur recebeu o nome de Lídia, como forma de homenagear Ricardo Reis – “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio”. A Lídia que vi, no dia 3 de Setembro p.p., representar magnificamente com Eunice Muñoz, sua avó, A Margem do Tempo de Franz Xaver Kroetz, em cena no Auditório Municipal Eunice Muñoz. Comovente e inadiável!

A finalizar, deixo, com a mesma emoção da primeira leitura, o testemunho de outro ex-aluno, mas da Escola Secundária Afonso Domingues (1980-1981), antiga Escola Industrial, oficialmente extinta em 2010. Aluno que marcou profundamente as minhas aulas, colegas e demais professores e cujo trabalho de historiador da ciência tenho tido o prazer de acompanhar. Chama-se Henrique Leitão e foi Prémio Pessoa, em 2014. A esse propósito escreveu um texto, expressivamente intitulado “Recordar é agradecer”, no Jornal de Letras (24 Dezembro de 2014 a 6 de Janeiro de 2015). Eis um extracto: “Determinou-se então que iria para a Escola Secundária Afonso Domingues. […] Durante esses anos o meu caminho na direcção das Ciências só teve um sobressalto chamado Maria do Carmo Vieira. As aulas da Carmo eram incríveis e acho que nunca mais vi a mesma paixão, a mesma intensidade, a mesma devoção às letras, à literatura – e aos alunos. Havia rigor e exigência, e naqueles poemas, romances e histórias estava tudo vivo.”

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